Cena 9 – Blefando Contra um Desconhecido.
Numa
das salas do Castelo, Sardinha se mantinha sentado há dias. Tinha acampado no
quartel general dos bruxos e era seguido por Aleyster. Os dois amigos estavam
devidamente preocupados com um terceiro amigo que deitado em uma maca fria numa
sala trancada, preocupava á todos por estar em coma há vários dias.
-
Sardinha – falava Aleyster que por ser o mais velho dos três, se preocupava
também com o mais novo – tome um banho e coma alguma coisa. Você não dorme há
dois dias e está só a base de sanduíches. Desculpe-me, mas Liath não vai sair
daquela sala tão cedo.
- Eu
sei, eu sei. Mas não me conformo com o coma dele. Sei que os médicos sofreram
para não perder o cara, mas eu não me conformo. Sabe, eu fiquei sem chão quando
o vi tendo convulsões em cima daquela maca toda pintada com o sangue dele.
Rezei muito para o cirurgião fazer o trabalho seu trabalho tendo chegado aqui
ás pressas e quase sem equipamento nas mãos. E agora, além do coma, essas
febres acima dos quarenta graus que ele está enfrentando. Ninguém normal
resiste á isso, mas ele é um bruxo. Ouvi
dizer que gente em coma, só não se meche, mas sente tudo, sabe de tudo que está
em volta. Dentro daquele corpo ele deve estar pedindo para morrer.
- Cara,
você na verdade agora tem outra coisa para se preocupar – Alyester ia chamar o
amigo de volta para a realidade – os deuses nos livrem dele fazer a última
viagem – é assim que os bruxos falam em morte – mas se ele ficar naquela maca
muito tempo, a investigação tem que continuar, o risco geral é grande e a tal
besta com isso está ganhando tempo e tomando a frente. Você vai ter que assumir
a missão. O conselho dos bruxos da nossa cidade está de cabelos em pé vendo seu
melhor soldado abatido e o mundo espiritual fechado para a maioria de nós. Você
tem de levantar daí, descansar um pouco e por a mão na massa.
-
Aleyster, sinceramente; estou com medo de não corresponder. Você mesmo acaba de
dizer que ele é o nosso melhor soldado. Eu treino dia e noite com ele, mas
ainda não estou pronto, meu treinamento ainda não acabou.
- Desculpe a sinceridade, mas acabou o
treinamento. Seu treino agora é a ação. Mas não se preocupe, enquanto você
estiver fora, tem muita gente aqui cuidando dele. Isso sem falar que desde que
vocês chegaram, a porta da sala está trancada e só os médicos entram, mas foram
isso, o entra e sai de elementais e totens de todo o tipo é uma coisa que
ninguém nunca viu aqui. O mundo espiritual está fechado mas parece que metade
dos espíritos do cosmos está vindo aqui trabalhar em cima do Liath. Vá para
casa, descanse e retome de onde vocês pararam. Agora se me dá licença, tenho de
ir. Eu tinha pedido uma nova remessa de armas para vocês e se não me engano, o
material deve estar aí. Preciso receber tudo e esconder para que os normais não
achem isso.
-
Certo, eu vou tomar um banho, trocar de roupa e ir para casa. Mas antes de sair
vou passar na sala para dar mais uma olhada nele.
Liath
por sua vez, mesmo desmaiado, sentiu quando dias atrás chegou no Castelo nos ombros
de Sardinha. Ouviu o grito espantado de Aleyster e de mais outros bruxos
conhecidos seus. Foi deitado na maca e sentiu o cirurgião abrir com tesoura o
tecido das roupas nos lugares dos ferimentos. Mas quando o médico ia começar á
trabalhar, a sala ficou toda branca, parecendo estar tomada por uma neblina
grossa. Então dois lobos surgiram nessa neblina. Apoiaram-se na maca, cheirando
o detetive e num gesto de carinho passaram á lhe lamber os ferimentos com sua
saliva medicinal. Depois de sentir algum alivio; o bruxo viu um homem em pé ao
lado dele. Era a sombra, o espírito de um sujeito que era forte feito um
trator, a pele era clara, os cabelos castanhos muito lisos, estavam cortados á
moda militar da segunda guerra. Os olhos verdes tinham um olhar duro e
decidido. A sombra vestia a farda que a Legião Estrangeira da França usava na
época da Segunda Grande Guerra. Na placa de identificação acima do bolso se lia
Cap. Bloch. Acima da placa do nome havia um brevê, uma identificação de
paraquedista e na manga esquerda da camisa se via o símbolo da lendária 9º
Divisão de Paraquedistas Legionários.
O
soldado sorriu de um jeito estranho para Liath, o segurou com uma mão pesada
feito pedra e por um dos braços, atirou o detetive para o teto. Liath foi
expulso do próprio corpo e nem teve como reagir. No mundo material ninguém viu
isso, mas foi então que vieram a convulsão e o coma que durante dias iam
amedrontar Sardinha e Aleyster.
O
detetive ia e voltava do próprio corpo á todo o momento, mas ao voltar nunca estava
só. Sempre havia algum soldado, de algum país e época diferentes; até um ninja
apareceu; mas quase sempre quem estava na sala era o legionário sinistro.
Mas
depois de não se sabe quanto tempo, Liath realmente acordou e saiu do coma.
Estava só na sala silenciosa e escura. O corpo doía muito e os ferimentos
inflamados e pingando pus não o deixavam se mexer. Mas então o capitão voltou e
andou para junto da maca gelada. Parecendo ter um corpo físico, o militar virou
o detetive na maca com violência, lhe pôs a mão grande e áspera sobre o coração
e pela primeira vez o soldado falou num francês de homem culto:
- Que
bom que você acordou, mas agora é hora de ir soldado. Temos muito o que fazer.
O
detetive sentiu como se uma casa lhe caísse em cima do corpo e não viu mais
nada, estava inconsciente mais uma vez. Mas se levantou da maca normalmente,
caminhou até as roupas remendadas e as vestiu. Pegou cada um de seus objetos
pessoais, vestiu o coldre onde colocou a pistola e calçou as botas que ainda
tinham algumas manchas do seu próprio sangue. Mas na hora de pegar o celular
que Chittor havia feito para ele, algo estranho aconteceu.
Quando
a mão do humano chegou perto, o aparelho se ligou, mas a tela ficou toda
vermelha e a frase “alerta de intruso” apareceu. O aparelho tremia de um jeito
sinistro, parecendo uma bomba pronta para explodir. A mão se afastou e o
aparelho apagou. O detetive então olhou em volta, tinha de sair, mas ao
contrário do normal, ao invés da porta foi para a janela. Olhou para baixo, a
rua lateral estava somente á um andar abaixo. Subiu no parapeito, encostou a
janela para dar a impressão que ela estava fechada e saltou. Caiu com os pés na
calçada vazia. Ninguém o viu ou escutou, o porteiro do prédio na calçada em
frente dormia e a noite esvaziava a avenida Rio Branco logo ao lado.. Então,
sem sentir os ferimentos, seu corpo se moveu na direção de sua casa á alguns
minutos dali em linha reta.
Minutos
depois Sardinha entrou na sala com lágrimas prontas dentro dos olhos, acendeu a
luz e viu ninguém. A sala estava vazia, seu mentor havia sumido. A mão do jovem
bateu com força no botão de emergência ao lado da porta, bruxos começavam á
brotar correndo de todos os cantos do prédio. Liath havia sido levado, alguém
passou por toda a guarnição do Castelo e
como um ninja levou o corpo de um bruxo em coma. Só restou de Liath o celular.
A tela do aparelho pulsava devagar com uma luz amarela, ali sardinha leu “sem
sinal procurando rede.” O aparelho também procurava o dono.
Minutos
depois duas recepcionistas acabavam seu turno de trabalho no hotel três
estrelas que funcionava na rua do bruxo. Uma delas o identificou, mas mesmo
quando o homem passou andando feito um robô á alguns metros das mulheres, uma
delas sentiu algo estranho e falou para a amiga:
- Olha
menina, é ele!
- Ele
quem? – perguntou a outra.
-
Lembra que uma vez eu quase fui assaltada na rua atrás do hotel e um morador
daquele prédio em cima da lotérica me salvou?! É aquele homem ali, mas ele está
estranho, a pele dele está vermelha e ele está tão quente que passou por nós
parecendo uma fogueira acesa. Deve estar ardendo em febre de tão doente, não
sei como está andando... tadinho...
Liath
viu tudo preto em sua frente, quando a vista clareou, se viu deitado no chão da
sala de seu apartamento, apenas lembrava de ter olhado pela janela lateral do
Castelo. Estava banhado de suor; caminhou com muita dificuldade para o
banheiro, tirou as roupas e debaixo do chuveiro limpou os ferimentos com um
remédio conhecido apenas pelos bruxos e alquimistas. No quarto, se vestiu e
caminhou para a sala, pegou a garrafa de uísque sobre a geladeira, estava tão
fraco que a garrafa parecia pesar dez quilos. Sentou-se á escrivaninha e ligou
o computador, tinha que trabalhar nas pistas que ainda não havia observado, a
ideia era achar um sinal da gema e sabia como fazer isso.
Abriu
uma gaveta e puxou a caixa que Exano lhe deu quando o detetive estava entre os
dragões. Abriu a caixa de madeira e da lá tirou uma caneta com ponta de pena
toda banhada em ouro. A caneta era do “Velho”, colocou a caneta dentro do
scanner e comandou o computador para escanear e rastrear. Enquanto a máquina
fazia seu trabalho, ele acessou a rede digital privativa dos furries, queria
saber se algo mais acontecera, queria tranquilizar os amigos que o davam por
morto e também queria fazer contatos. Sabia que o inimigo tinha uma tropa ao
seu serviço, se Liath quisesse enfrentar o inimigo, teria de levantar um
exército também.
Nas
muitas vezes que saiu do corpo durante o coma, falou com o espírito do Alpha da
Matilha Grande, sabia que lobos forasteiros chegaram na Floresta da Tijuca,
sabia seus nomes e até mesmo onde estavam. Formaram uma nova matilha e já havia
um novo Alpha na cidade. Conseguiu contato com quase todos por meio da rede.
Encontrou Tiger que não escondeu a felicidade ao saber que seu irmão humano
estava vivo. Conheceu Albus, á quem convidou para ir para a Floresta da Tijuca
se unir aos outros. Conheceu também Kuma, um jovem urso que morava no interior
Rondônia.
Liath
não sabia, mas na casa de Kuma havia mais um furry, Azure Nyoki era um dragão
já desperto. Mesmo sendo ainda muito jovem, antes do tempo normal Azure já
havia se formado em Biologia; se hospedou na casa de Kuma sob desculpa de
pesquisar para sua tese de mestrado em Genética. Azure queria falar com Kuma e
se sentou ao lado do amigo no computador. Kuma logo notou que o amigo não
estava bem mas disfarçou tentando animar
o dragão.
- Olha
só Nyoki! Lembra que o pessoal do Rio, São Paulo e Minas, está falando de um troço sobre uma besta que
anda matando furries por lá?
- Sim,
lembro – falou o dragão incomodado pelas dores no ombro direito.
-
Lembra também que disseram que tem um detetive bruxo correndo atrás da besta?
Pois é, eu estava aqui na chat com o pessoal do Sudeste e olha quem apareceu, o
detetive. Pegue o seu tablet e fale com ele também! O cara parece ser legal, e
pelo que vejo, todo mundo que está no chat conhece ele. Vem, entra!
- Não Kuma, obrigado. Eu não estou passando
bem, lembra que meu ombro tem doido de novo esta semana? Pois é, sempre que
isso começa eu tenho problemas, o pior é que nunca doeu tanto como neste exato
momento. Eu vou embora.
O urso
olhou para o amigo e viu sua fursona ligada. Nyoki era um dragão branco com
detalhes azuis, mas quem via sua fursona
se assustava, nela haviam vários implantes mecânicos, Azure Nyoki era um
dragão androide. Os implantes foram postos ali á força por não se sabe quem,
Azure nunca lembrava. Mas ele sabia que quando as dores no implante do ombro
esquerdo começavam, homens loiros e grandes feito postes apareciam tentando
sequestra-lo. Mas agora as dores eram maiores, ou os sequestradores estavam
muito perto, ou mais gente o procurava. A única saída era fugir. Kuma não tinha
como dizer não, foi com tristeza que viu o amigo ir para a floresta, preparar
sua partida. Azure evocou uma magia de dragão muito antiga, a terra pareceu
tremer, uma névoa se levantou e do chão o espírito de um dragão ancião surgiu.
Nyoki o viu e apenas perguntou:
- Para
onde?
- Para
o mar, procure o lobo negro que vive na toca junto do mar.
Quando
o sol raiasse, Azure estaria de malas prontas dentro de um barco para a cidade
de Porto Velho, ali pegaria um avião para o Nordeste e começaria a buscar o tal
lobo do mar.
No
exato instante em que Azure saiu da casa, o computador do detetive terminou a
busca. Um sinal bem ativo estava na Zona Oeste do Rio, era “OVelho” morrendo em
sua casa. Um sinal médio da gema estava na Região dos Lagos do Rio, um outro
maior na Cordilheira dos Andes e um último, o menor de todos estava em Rondônia.
Este sinal era o único em movimento. Mas o detetive estava tão mal que entendeu
Roraima, não resistiu ao entusiasmo e declarou os sinais no chat, todos se
alegraram com a boa notícia. Fora isso, Liath pedia a Kyle, membro da Matilha
Nova que convocasse mais lobos, queria uma matilha completa, cinquenta lobos. O
detetive começava á reunir sua tropa. Mas de repente, sentiu a febre subir e
teve que sair do chat.
Neste
momento escutou uma voz de homem atrás de si, vinda da parede a voz falou em
Francês:
-
Chega, você já descansou o suficiente. Precisamos marchar de novo.
Quando
olhou para trás, Liath viu o legionário, que de tão perto estava quase em cima
dele. A vista de Liath escureceu novamente.
Autor; Estevam Silva.
Ilustrador: Marco Aramha.


Nenhum comentário:
Postar um comentário