sábado, 23 de agosto de 2014




Cena 4 - O Peixe da Mesa.

                O carro partiu e depois de alguns minutos, entrou numa rua paralela da Cinelândia no limite entre o Centro e a Zona Sul. A rua estreita, mal iluminada e deserta abrigava restaurantes nos fundos dos antigos cinemas que viraram igrejas neo pentecostais. O carro estacionou na porta de um edifício misto antigo, que no térreo tinha um teatro, mas também uma sex shop e dois cinemas pornôs, lugar deprimente para um bruxo morar, mas era o dinheiro de um afinador de pianos que lhe pagava o aluguel. Subiram pela entrada de serviço, e o respirador do cinema vazou o característico som de filme pornográfico para dentro do elevador. Saltaram e carregaram o material pelo corredor largo, cheio de salas, até a porta com o número 201 pintado no vidro canelado no alto do pórtico escuro.
                Quem passava aquela porta e chegava na sala, sentia que tinha voltado aos anos 40, quando o prédio ficou pronto. Os móveis de um autêntico escritório da época eram pesados e de cor escura, não havia estofamento a não ser no velho sofá marrom. A grande escrivaninha tomava todo o centro da sala, que era escura e rescindia á mofo pois a janela dava para o interior do edifício e suas muitas janelas numa parte onde o sol jamais encostava. Para disfarçar o cheiro, incensos eram acesos á todo o momento. Ainda havia a geladeira branca, muito antiga, que por ser grande não coube na cozinha apertada que só suportava um fogão de duas bocas na bancada da pia. O banheiro ainda tinha o aquecedor de gás- inútil- e a costumeira banheira de ardósia daqueles tempos. Só o quarto era um pouco melhor, pois a mobília dali, vinha de uma loja de bazar dessas bem populares que fazem extensos crediários, gerando dívidas eternas.
                Abriram as caixas e sobre a escrivaninha montaram o computador. Dois tubos de imagem de TV 20 polegadas faziam as vezes de monitor; a CPU era uma antiga estação portátil de telefonista, ainda tinha os fios e os plugues que lhe deram o apelido de pega pega,  tinha um monte de luzes por todos os cantos e entradas de USB nas costas; dois auto falantes de rádio antigo emitiam os sons da máquina; o mouse parecia um besouro aberto carregado de peças de bronze; o teclado era a metade da frente de uma velha máquina de escrever manual das mais antigas; um teclado menor, separado, continha só os números e símbolos; o console de um aparelho telefônico de disco servia para internet discada e conexões criptografadas; por fim, um mostrador redondo e negro que emitia raios de cor azulada em sua superfície mostrava não só alguns dados da CPU pelas cores dos raios, mas também era a fonte de energia, o computador não tinha tomada, aquilo capturava eletricidade da instalação elétrica do imóvel e punha a máquina para trabalhar.
                - Você veio no caminho dizendo que o tal guepardo tinha um gosto inusitado, agora vejo que não exagerou. Mas esse computador é melhor do que a máquina de mesa mais avançada que conheço.
                - É, mas acabo de notar mais uma coisa, veja só isto.
                Liath apertou um certo comando no teclado e os dados da máquina apareceram, além de uma capacidade de armazenamento absurda que realmente superava computadores científicos, a máquina era ternária.
                - Certo- falava Sardinha- agora que já estamos bem equipados, mas por onde começar?
                - Eu já tenho uma linha para seguir, melhor, alguém para seguir. Mas isso fica para amanhã, estamos em cacos, desse jeito vamos à lugar nenhum.
                Estavam exaustos pois há dois dias não comiam ou dormiam, esperando o início da missão, estavam de prontidão e antes de começar tiveram pouquíssimo tempo para se preparar, então Sardinha foi para casa e Liath também tratou de se recolher. Mas a investigação lhe tomava a mente e se transformou em insônia. Levantou a meia noite e ligou para Exano obtendo o dado que queria numa conversa de poucos segundos, foi para o computador e começou á trabalhar, se maravilhando com a facilidade de operar e obter dados  no brinquedo novo que ignorava firewalls e outros protocolos de segurança. Com a mente sem ânsias e exangue, adormeceu na escrivaninha mesmo.
                O dia nem raiara e o esquisito smartphone chamava despertado seu dono, era uma mensagem de texto:
                “ Fala, mala! Hoje ás 15 hs na minha sala no castelo para relatório. Traga seu aluno. Abraços. Aleyster.”
                Esfregou o rosto enquanto reclamava da necessidade de prestar relatórios aos bruxos mais antigos. O joelho direito, lhe doía, restos de uma missão antiga.
                Uma pessoa normal nessa hora pensaria no café da manhã, mas estava estranhamente irritado, pegou a garrafa de Bourbon sobre a geladeira se servindo de uma dose, acendeu um cigarro e começava á pensar no início do dia quando Sardinha chegou.
                - Vou tomar um banho e fazer a barba- dizia Liath de cara inchada- enquanto isso, leia o dossiê que montei de madrugada. Ah, e se prepare, Aleyster quer a gente no castelo hoje à tarde.
                - Aleyster?! Que bom, não vejo aquele doido faz uns dois anos, vai ser bom encontrar esse maluco de novo. Humm, está mancando, ainda é daquele tiro que me falou?
                - Olha, ser baleado já é duro, ainda mais se for por um biruta que se acha um novo inquisidor. Atirar em mim foi a última coisa que ele fez em vida, mas juro que nunca mais vou me meter a defender um grupo de bruxaria formado só por mulheres. Mulher fala demais, atraíram a atenção e o único que se ferrou, fui eu.
                - Mas eram bem bonitinhas, né?
                - Enquanto vossa senhoria “ macacão sujo de graxa” se fartava, eu aqui sangrava! Cala a boca e respeita seu padrinho de sacerdócio!
                Com o documento nas mãos, Sardinha foi para a cozinha ver o que encontrava, menos de uma hora depois, sob o sol nascente, estavam ambos sob um pequeno viaduto no bairro de Botafogo na Zona Sul carioca. Estavam encostados numa barraca de flores que estranhamente se instalara sob o viaduto, mas era um bom disfarce, se alguém os visse, diriam estar comprando plantas para alguém, coisas da rotina dos bruxos. Mas era a melhor posição para observar a portaria do edifício comercial onde o Terno Cinza tinha seu medíocre escritório de advocacia.
                O levantamento de Liath, continha o número da carteira de advogado do suspeito, o dado que obteve com Exano. Com isso, vieram suas audiências agendadas e o valor das causas, honorários um pouco autos pagos por ladrões de galinha. Às oito horas o alvo passou pela rua indo para o edifício, sabiam que teria uma audiência as dez e que por isso sairia cerca de uma hora antes. Na hora prevista ele passou rumo ao ponto de ônibus.
                - Ótimo- disse Liath- lá vai o peixe da mesa, em dez minutos eu quero que você suba até lá, entre fingindo que quer falar com ele e levante a planta do lugar. Descubra a sala dele e onde estão os arquivos, quero imagens, pois de noite, eu volto para procurar pistas no escuro.
                Quem abriu a porta foi uma morena de altura mediana, bonita e dona de um corpo sexy enfiado em roupas baratas de gosto duvidoso. Logo que viu o mestiço de índio na porta, ela abriu um enorme sorriso.
                - Bom dia, eu vim falar com o Doutor, falei com ele ontem de tarde por telefone e vim discutir uma causa com ele.
                - Ele foi á rua mas não deve demorar, pode esperar?
                Sardinha sabia que a moça mentia. Sentou-se no sofá da sala de espera, de frente para a mesa da menina, que era a secretária do Terno Cinza. Logo notou que a garota se insinuava, mas como quem fala para passar o tempo, fingiu se deixar levar. Então atuou como se fosse fazer uma ligação no celular mas na verdade preparava a câmera.
                - Desculpe, tem como me arranjar um copo d’água?
                Lá foi ela para a cozinha se atrapalhar com o lacre de uma garrafa de água mineral. Isso deu tempo para o infiltrado que produziu imagens o quanto queria, passou a mão por uma porta entreaberta atrás da cadeira da secretária e assim fotografou a sala do suspeito. Quando ela voltou, ele já estava em seu lugar no sofá.
                Para a surpresa de Sardinha, a moça tinha uma tática de sedução meio torta, tentava menosprezá-lo, fazendo pouco dele como se não tivesse interesse. Sardinha reconheceu essa atitude, ela era uma troll! Um dragão dava emprego para uma troll, o Terno Cinza se enrolava mais a cada minuto.
                - Bom, acho que ele vai demorar e eu tenho de ir para o trabalho. Volto outra hora.
                - Certo- a moça pegou um bloco e anotou algo em uma folha- mas se estiver desocupado de noite, me ligue, melhor ainda, se puder vá á minha casa.
                Já na rua.
                - Ele tem uma secretária troll!
                - Verdade?!
                - Sim, e ela me mandou passar na casa dela esta noite.
                - Para variar...- Liath não cansava de se irritar com o auxiliar mulherengo- bom para a investigação. Mas para você é um risco, estará a sós com o inimigo no terreno dele, digo, dela.
                As imagens eram em grande número, mas a qualidade prejudicava:
                - Vou ver se o Chittor tem outro celular daqueles, essa coisa velha vai começar a nos causar problemas.
                - Oba! Só você se dá bem? Até que em fim, vai sobrar algo de bom para mim!
                - E isso aqui, Dom Juan? Eu nem com feitiço consigo isso em meia hora de conversa- Liath abanava o papel com o endereço da secretária.
                Neste momento, o celular uivou cortando a conversa. O bruxo puxou o aparelho do bolso e leu no visor um nome desconhecido, Were Fenrirr, e o número tinha DDD de Belo Horizonte.
                - Ah, e essa agora! Acho que colocaram meu telefone no mural de algum evento Furry! Nunca ouvi esse nome!
                - Pelo nome deve ser um lobo- disse Sardinha- ...lobo...melhor atender, não se deixam parentes esperando.
                - Alô- atendeu Liath, ouvindo um uivo claro como resposta.
                - Liath? Bom dia. Soube que você está no caso da besta, eu acabo de saber de algo e preferi passar por cima dos dragões e lhe falar diretamente. Trago duas notícias alarmantes. A primeira é que lendo o jornal daqui de hoje, nas páginas policiais havia um homicídio estranho e bruto, mas reconheci a foto da vítima, era um Furry daqui de Minas. Logo em seguida meu telefone tocou, era uma loba amiga minha perguntando de  um dragão daí do Rio ,amigo nosso. Ela queria saber se ele  foi ao evento que houve ontem aqui em Belô. Segundo ela, o rapaz está sumido faz uma semana, e sumiu aí mesmo!
                - Obrigado por ter me dado a prioridade da informação, vou lhe dar meu e-mail e você por gentileza me passe a reportagem do homicídio. Mas quem é o dragão que sumiu?
                - O nome dele é Shimon.
                O bruxo e o Therian- talvez Otherkin- se despediram trocando gentilezas típicas de lobos e Liath terminou a ligação virando- se para Sardinha:
                - Agora essa! – Liath se mostrava preocupado- Um Furry morto e outro desaparecido, e pior, o abduzido é justo um dragão.
                - Será que os dragões com quem você esteve ontem,  já sabem disso?


Autor: Estevam Silva
Ilustração: Marco Aramha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário