Cena 4 - O Peixe da Mesa.
O carro
partiu e depois de alguns minutos, entrou numa rua paralela da Cinelândia no
limite entre o Centro e a Zona Sul. A rua estreita, mal iluminada e deserta
abrigava restaurantes nos fundos dos antigos cinemas que viraram igrejas neo
pentecostais. O carro estacionou na porta de um edifício misto antigo, que no
térreo tinha um teatro, mas também uma sex shop e dois cinemas pornôs, lugar
deprimente para um bruxo morar, mas era o dinheiro de um afinador de pianos que
lhe pagava o aluguel. Subiram pela entrada de serviço, e o respirador do cinema
vazou o característico som de filme pornográfico para dentro do elevador.
Saltaram e carregaram o material pelo corredor largo, cheio de salas, até a
porta com o número 201 pintado no vidro canelado no alto do pórtico escuro.
Quem
passava aquela porta e chegava na sala, sentia que tinha voltado aos anos 40,
quando o prédio ficou pronto. Os móveis de um autêntico escritório da época
eram pesados e de cor escura, não havia estofamento a não ser no velho sofá
marrom. A grande escrivaninha tomava todo o centro da sala, que era escura e
rescindia á mofo pois a janela dava para o interior do edifício e suas muitas
janelas numa parte onde o sol jamais encostava. Para disfarçar o cheiro,
incensos eram acesos á todo o momento. Ainda havia a geladeira branca, muito
antiga, que por ser grande não coube na cozinha apertada que só suportava um
fogão de duas bocas na bancada da pia. O banheiro ainda tinha o aquecedor de
gás- inútil- e a costumeira banheira de ardósia daqueles tempos. Só o quarto
era um pouco melhor, pois a mobília dali, vinha de uma loja de bazar dessas bem
populares que fazem extensos crediários, gerando dívidas eternas.
Abriram
as caixas e sobre a escrivaninha montaram o computador. Dois tubos de imagem de
TV 20 polegadas faziam as vezes de monitor; a CPU era uma antiga estação
portátil de telefonista, ainda tinha os fios e os plugues que lhe deram o
apelido de pega pega, tinha um monte de
luzes por todos os cantos e entradas de USB nas costas; dois auto falantes de
rádio antigo emitiam os sons da máquina; o mouse parecia um besouro aberto
carregado de peças de bronze; o teclado era a metade da frente de uma velha
máquina de escrever manual das mais antigas; um teclado menor, separado,
continha só os números e símbolos; o console de um aparelho telefônico de disco
servia para internet discada e conexões criptografadas; por fim, um mostrador
redondo e negro que emitia raios de cor azulada em sua superfície mostrava não
só alguns dados da CPU pelas cores dos raios, mas também era a fonte de
energia, o computador não tinha tomada, aquilo capturava eletricidade da
instalação elétrica do imóvel e punha a máquina para trabalhar.
- Você
veio no caminho dizendo que o tal guepardo tinha um gosto inusitado, agora vejo
que não exagerou. Mas esse computador é melhor do que a máquina de mesa mais
avançada que conheço.
- É,
mas acabo de notar mais uma coisa, veja só isto.
Liath
apertou um certo comando no teclado e os dados da máquina apareceram, além de
uma capacidade de armazenamento absurda que realmente superava computadores
científicos, a máquina era ternária.
-
Certo- falava Sardinha- agora que já estamos bem equipados, mas por onde
começar?
- Eu já
tenho uma linha para seguir, melhor, alguém para seguir. Mas isso fica para
amanhã, estamos em cacos, desse jeito vamos à lugar nenhum.
Estavam
exaustos pois há dois dias não comiam ou dormiam, esperando o início da missão,
estavam de prontidão e antes de começar tiveram pouquíssimo tempo para se
preparar, então Sardinha foi para casa e Liath também tratou de se recolher.
Mas a investigação lhe tomava a mente e se transformou em insônia. Levantou a
meia noite e ligou para Exano obtendo o dado que queria numa conversa de poucos
segundos, foi para o computador e começou á trabalhar, se maravilhando com a
facilidade de operar e obter dados no
brinquedo novo que ignorava firewalls e outros protocolos de segurança. Com a
mente sem ânsias e exangue, adormeceu na escrivaninha mesmo.
O dia
nem raiara e o esquisito smartphone chamava despertado seu dono, era uma
mensagem de texto:
“ Fala,
mala! Hoje ás 15 hs na minha sala no castelo para relatório. Traga seu aluno.
Abraços. Aleyster.”
Esfregou
o rosto enquanto reclamava da necessidade de prestar relatórios aos bruxos mais
antigos. O joelho direito, lhe doía, restos de uma missão antiga.
Uma
pessoa normal nessa hora pensaria no café da manhã, mas estava estranhamente
irritado, pegou a garrafa de Bourbon sobre a geladeira se servindo de uma dose,
acendeu um cigarro e começava á pensar no início do dia quando Sardinha chegou.
- Vou
tomar um banho e fazer a barba- dizia Liath de cara inchada- enquanto isso,
leia o dossiê que montei de madrugada. Ah, e se prepare, Aleyster quer a gente
no castelo hoje à tarde.
- Aleyster?!
Que bom, não vejo aquele doido faz uns dois anos, vai ser bom encontrar esse
maluco de novo. Humm, está mancando, ainda é daquele tiro que me falou?
- Olha,
ser baleado já é duro, ainda mais se for por um biruta que se acha um novo
inquisidor. Atirar em mim foi a última coisa que ele fez em vida, mas juro que
nunca mais vou me meter a defender um grupo de bruxaria formado só por
mulheres. Mulher fala demais, atraíram a atenção e o único que se ferrou, fui
eu.
- Mas
eram bem bonitinhas, né?
-
Enquanto vossa senhoria “ macacão sujo de graxa” se fartava, eu aqui sangrava!
Cala a boca e respeita seu padrinho de sacerdócio!
Com o
documento nas mãos, Sardinha foi para a cozinha ver o que encontrava, menos de
uma hora depois, sob o sol nascente, estavam ambos sob um pequeno viaduto no
bairro de Botafogo na Zona Sul carioca. Estavam encostados numa barraca de
flores que estranhamente se instalara sob o viaduto, mas era um bom disfarce,
se alguém os visse, diriam estar comprando plantas para alguém, coisas da
rotina dos bruxos. Mas era a melhor posição para observar a portaria do
edifício comercial onde o Terno Cinza tinha seu medíocre escritório de
advocacia.
O
levantamento de Liath, continha o número da carteira de advogado do suspeito, o
dado que obteve com Exano. Com isso, vieram suas audiências agendadas e o valor
das causas, honorários um pouco autos pagos por ladrões de galinha. Às oito
horas o alvo passou pela rua indo para o edifício, sabiam que teria uma
audiência as dez e que por isso sairia cerca de uma hora antes. Na hora
prevista ele passou rumo ao ponto de ônibus.
-
Ótimo- disse Liath- lá vai o peixe da mesa, em dez minutos eu quero que você
suba até lá, entre fingindo que quer falar com ele e levante a planta do lugar.
Descubra a sala dele e onde estão os arquivos, quero imagens, pois de noite, eu
volto para procurar pistas no escuro.
Quem
abriu a porta foi uma morena de altura mediana, bonita e dona de um corpo sexy
enfiado em roupas baratas de gosto duvidoso. Logo que viu o mestiço de índio na
porta, ela abriu um enorme sorriso.
- Bom
dia, eu vim falar com o Doutor, falei com ele ontem de tarde por telefone e vim
discutir uma causa com ele.
- Ele
foi á rua mas não deve demorar, pode esperar?
Sardinha
sabia que a moça mentia. Sentou-se no sofá da sala de espera, de frente para a
mesa da menina, que era a secretária do Terno Cinza. Logo notou que a garota se
insinuava, mas como quem fala para passar o tempo, fingiu se deixar levar.
Então atuou como se fosse fazer uma ligação no celular mas na verdade preparava
a câmera.
-
Desculpe, tem como me arranjar um copo d’água?
Lá foi
ela para a cozinha se atrapalhar com o lacre de uma garrafa de água mineral.
Isso deu tempo para o infiltrado que produziu imagens o quanto queria, passou a
mão por uma porta entreaberta atrás da cadeira da secretária e assim fotografou
a sala do suspeito. Quando ela voltou, ele já estava em seu lugar no sofá.
Para a
surpresa de Sardinha, a moça tinha uma tática de sedução meio torta, tentava
menosprezá-lo, fazendo pouco dele como se não tivesse interesse. Sardinha
reconheceu essa atitude, ela era uma troll! Um dragão dava emprego para uma
troll, o Terno Cinza se enrolava mais a cada minuto.
- Bom,
acho que ele vai demorar e eu tenho de ir para o trabalho. Volto outra hora.
-
Certo- a moça pegou um bloco e anotou algo em uma folha- mas se estiver
desocupado de noite, me ligue, melhor ainda, se puder vá á minha casa.
Já na
rua.
- Ele
tem uma secretária troll!
-
Verdade?!
- Sim, e ela me mandou passar na
casa dela esta noite.
- Para
variar...- Liath não cansava de se irritar com o auxiliar mulherengo- bom para
a investigação. Mas para você é um risco, estará a sós com o inimigo no terreno
dele, digo, dela.
As
imagens eram em grande número, mas a qualidade prejudicava:
- Vou
ver se o Chittor tem outro celular daqueles, essa coisa velha vai começar a nos
causar problemas.
- Oba!
Só você se dá bem? Até que em fim, vai sobrar algo de bom para mim!
- E
isso aqui, Dom Juan? Eu nem com feitiço consigo isso em meia hora de conversa-
Liath abanava o papel com o endereço da secretária.
Neste
momento, o celular uivou cortando a conversa. O bruxo puxou o aparelho do bolso
e leu no visor um nome desconhecido, Were Fenrirr, e o número tinha DDD de Belo
Horizonte.
- Ah, e
essa agora! Acho que colocaram meu telefone no mural de algum evento Furry!
Nunca ouvi esse nome!
- Pelo
nome deve ser um lobo- disse Sardinha- ...lobo...melhor atender, não se deixam
parentes esperando.
- Alô-
atendeu Liath, ouvindo um uivo claro como resposta.
-
Liath? Bom dia. Soube que você está no caso da besta, eu acabo de saber de algo
e preferi passar por cima dos dragões e lhe falar diretamente. Trago duas
notícias alarmantes. A primeira é que lendo o jornal daqui de hoje, nas páginas
policiais havia um homicídio estranho e bruto, mas reconheci a foto da vítima,
era um Furry daqui de Minas. Logo em seguida meu telefone tocou, era uma loba
amiga minha perguntando de um dragão daí
do Rio ,amigo nosso. Ela queria saber se ele
foi ao evento que houve ontem aqui em Belô. Segundo ela, o rapaz está
sumido faz uma semana, e sumiu aí mesmo!
-
Obrigado por ter me dado a prioridade da informação, vou lhe dar meu e-mail e
você por gentileza me passe a reportagem do homicídio. Mas quem é o dragão que
sumiu?
- O nome
dele é Shimon.
O bruxo
e o Therian- talvez Otherkin- se despediram trocando gentilezas típicas de
lobos e Liath terminou a ligação virando- se para Sardinha:
- Agora
essa! – Liath se mostrava preocupado- Um Furry morto e outro desaparecido, e
pior, o abduzido é justo um dragão.
- Será
que os dragões com quem você esteve ontem,
já sabem disso?
Autor: Estevam Silva
Ilustração: Marco Aramha.


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