sexta-feira, 29 de agosto de 2014



Cena 6 -  Jogadores Agressivos.

                A reunião da tarde foi mais uma conversa do que um relatório. Os três eram amigos de infância, a amizade importava mais do que a hierarquia. Aleyster era o mais velho, Liath o do meio e Sardinha o mais novo. Aleyster começou nos mistérios da bruxaria primeiro e ao crescer se tornou professor. Liath veio poucos anos depois, tentou completar a faculdade mas durante o curso, iniciou a vida de investigador forçadamente e começou a  afinar pianos para os colegas de faculdade lhe garantia uma renda. Já Sardinha, era o mais jovem, começou por último e era o único que era realmente ensinado por um dos outros dois durante as folgas na oficina. Foi Liath quem lhe percebeu os dons e o trouxe para o meio dos bruxos. Agora lá estavam os três em um prédio antigo do Centro do Rio, sobre uma enorme livraria que funcionava no térreo de um edifício de quatro pavimentos. Os três se reuniram e conversaram numa sala no segundo andar do edifício de uma suposta empresa. Mas a empresa era de um bruxo milionário que cedeu o prédio para os líderes da bruxaria local. O lugar era conhecido pelo codinome de castelo, pois era de fato um palacete.
                Na verdade, Aleyster queria entregar um presente da Guilda para os investigadores trabalharem. Sardinha ganhou um belíssimo Sabre Toledo, enquanto Liath recebia uma Kataná Ninja To, mais adequada ao seu estilo de combate. Porém essas espadas iriam revelar mais mistérios sobre si mesmas.
                De noite o combinado matinal funcionou, Sardinha foi para a casa da troll enquanto Liath invadia o escritório do terno cinza. Na manhã seguinte se encontraram na casa de Liath para avaliar seus progressos.
                - A menina quer que eu volte lá hoje- dizia Sardinha- se continuar assim, terei mais trânsito com ela e poderei investigar o que ela leva do trabalho para casa. Isso sem falar que notei uma coisa; ela é falante demais, já contou algumas indiscrições do patrão. A qualquer hora, sairá algo de interessante.
                - Certo- respodia Liath- vamos segurar a fonte. Mas como foi o andamento da coisa? Você está com a cara meio cansada- Liath zombava.
                - Não vou ser indiscreto com a “dama”- Sardinha dobrava os dedos destacando as aspas ao se referir a ela como dama-  mas eu digo que nunca vi ninguém sustentar tanta libido! Só agora eu entendo o que os mitos antigos diziam sobre as trolls tentarem seduzir os humanos para escraviza-los. Foi bom demais, por mim eu volto lá agora. Mas sei lá o que ela quer de mim?! Ela não é nem uma troll de verdade, é só uma boba de internet, mas as similaridades com o comportamento desses elementais é tão grande que se confundem. Ainda bem que ela não é uma troll encarnada ou uma Elemental pura, senão, eu estaria ferrado e já seria escravo do charme torto dela. Mas e agora, por onde vamos?
                - No escritório do Terno Cinza, fiz cópias de uma montoeira de papéís os quais depois vamos ter que examinar com muita calma. Mas o clima daquele lugar é estranho, nada me convence de que a única anomalia ali é uma trollsinha de internet. Definitivamente há algo mais. Porém, agora temos de averiguar a novidade. Vamos checar o sumiço do dragão. Já chegou o e-mail do Were Fenrir, sei onde foi o último avistamento. Vamos lá agora.
                Fim da manhã e estavam os dois no bairro do Méier, subúrbio carioca. O lugar era numa avenida extensa mas de pouco trânsito pois a via era a divisora de duas favelas com facções do tráfico inimigas. Bastava se atravessar a rua para mudar de lado. Shimon foi visto pela última vez as portas de um enorme galpão abandonado.
                - Cuidado, acho que só de olhar você já deduz o risco. Mas o lugar é estranho mesmo. Tempos atrás executei uns serviços para uma loja de pianos logo depois daquela esquina e passava por aqui para pegar o ônibus para casa. Várias vezes, ouvi ruídos dentro do galpão. Dizem que os traficantes o estão usando como laboratório. Mas com certeza, não foram eles que sumiram com Shimon. Vamos perguntar por aí. Mas tem que ser algo certo, e sem chamar a atenção, ou vamos sair daqui sob tiros.
                - Mas aqui não tem nada nem ninguém com cara de confiável para interrogar? Onde vamos arranjar uma testemunha nesse buraco- Sardinha ainda não tinha a mesma malícia que seu tutor.
                Liath olhou em volta e viu uma placa na entrada da favela, a casa da placa tinha portas e janelas que davam frente para a rua e sua moradora podia ser vista pela janela. Para ter o pretexto certo, Liath pegou um canivete e produziu alguns defeitos na camisa que usava. E lá se foram os dois.
                De fato, a moradora justificava a fama de fofoqueira da sua profissão. Falava pelos cotovelos e era indiscreta, Liath foi lentamente chegando no assunto e descobriu o motivo de Shimon estar naquele lugar.
                - Home si minino- falava Dona Zefinha- o rapaz teve aqui sim pra arrematá uma fantasia de pilúça, num sabe? Cabra simpático, pagou bem e até convidô minha sobrinha Craudiane prá í num tal evento fúrru mód vê ele vestindo aquela roupa do cancro. Ô troço quente!!!
                - Rapaz- sussurrava Sardinha ente dentes- onde é que você foi arranjar essa peça rara?
                - Calma garoto- repondia Liath do mesmo jeito fingindo um sorriso- é costureira...costureira.
                - Aí dispois que ele saiu, vi ele atravessando a rua e indo prá quele lado. Mas a Craudiane tava na rua e disse que viu uns galego grandão chegar e falar com ele que foi junto com os cabra, num sabe? Diz ela que eles foi tudo pro lado da outra favela indo pela rua do canal perto do muro do galpão.
                Saíram de lá pagando mais do que o serviço realmente custava. Voltaram já na alta madrugada, estacionaram num canto da rua perto de um matagal, entre o canal e o muro. Se esgueiraram pelo capim alto entrando por um buraco no muro. Estevam bem armados, Sardinha estranhou não levarem armas para longa distância, mas Liath disse que pelo tipo de lugar não precisariam de armas de longo alcance. Varreram o edifício todo parte por parte lentamente; garantiam a própria segurança antes de vasculhar em busca de algo mais. Nenhum som, apenas gestos garantiam a comunicação. A dupla funcionava mecanicamente como se treinados para isso a vida inteira. Vasculharam os quatro andares e o estacionamento, quando viram que estavam seguros, conectaram fones aos celulares para usarem como rádios. Abandonaram a postura de soldado e se transformaram em detetives novamente.
                Liath ficou com o estacionamento e os dois primeiros andares, Sardinha pegou os andares de cima e o terraço. Realmente, havia sinais da presença constante de traficantes no local, Liath descobriu e sabotou todo um laboratório de refino de cocaína crack. Porém Sardinha o chamava no 4º andar.
                O jovem descobriu um sutil rastro de sangue perto das janelas entre alguns tapumes, porém olhando com mais calma, havia uma bolsa de viagem vazia e um retalho de pelúcia no chão, evidência de furry no local.
                Liath puxou o celular e se concentrou ao por a mão livre e desenluvada no chão próximo. Sardinha recolheu a bolsa e o retalho ouvindo Liath dizer.
                - Vamos ver se essa traquitana do gato funciona mesmo.
                E assim acionou sua psicometria. Conseguiu ver cerca de sete pessoas, todos homens. Alguns armados que espancavam o dono da bolsa, o rosto de Shimon apareceu mas a informação foi breve, pois deram uma injeção na vítima e a visão se apagou. O celular vibrava, traduzindo a magia em dados.
                Quando iam examinar o resultado, escutaram um estouro, algo silvou por entre a cabeça dos dois e se espatifou estalando no piso. Liath empurrou Sardinha para o lado.
                - Arma! Abrigar! Abrigar!
                Sardinha se levantou correndo para uma pilastra enquanto Liath se abrigava em outra.
                Então o guerreiro dos bruxos em fim mostrou como sua gente combate. Se concentrou fechando os olhos, respirou fundo erguendo a mão direita com a palma para baixo e a esquerda em sentido inverso e mais perto do chão. A poeira em torno dos seus pés se agitou e do piso começou á brotar uma névoa branca, densa e fria que girava no sentido do relógio. Tiros estalavam enquanto a nuvem crescia tomando todo o recinto, menos a parte onde Sardinha se abrigava fazendo fogo de contenção.
                De repente, tudo sumiu e silenciou; Sardinha se viu sozinho no galpão que agora mais parecia uma tumba, toda a ação cessou subitamente. Então o jovem bruxo teve um estalo. Liath evocou o feitiço da Nuvem da Ascensão e estava combatendo dentro dela, o inimigo, fosse quem fosse, iria pagar caro se quisesse sair vivo; pois simplesmente estaria lutando dentro da lendária nuvem da invisibilidade, que era mencionada no folclore do mundo inteiro. O agressor estaria cego, mas sendo visto; seria ouvido, mas estaria surdo. Magia de gente grande.
                Sardinha se pôs de pé e caminhou para a porta com a arma pronta para atirar ao menor movimento, pois alguém poderia ser expulso da nuvem controlada por Liath. Desceu as escadas mas no patamar do segundo andar sua intuição apitou com força. Ele abriu sua terceira visão e através de parede, viu a áurea de um homem que vinha sorrateiro pelo corredor em direção a porta das escadas.  O sujeito sem saber de nada, abriu a porta e passou furtivamente, mas então o mecanismo de uma 9 mm silenciada estalou;  o homem rolou escada abaixo, abatido por um tiro na nuca certeiro que Sardinha lhe deu por detrás da porta. Com a boca aberta, o jovem olhava o cadáver rolar, era sua primeira morte e estava perplexo consigo mesmo.
                Segundos depois, tratou de recobrar a consciência e retomar o combate. Mal desceu alguns degraus e ouviu madeira se quebrando nos andares de cima. Algo grande passou zunindo no ar pelo vão da escada para se estatelar com um estrondo de bomba no térreo. Sardinha botou a cabeça fora da escada e olhou, junto com o que ele matou, já se contavam dois inimigos mortos. Liath estava fazendo sua parte, o que lhe deu segurança para ir em frente.
                Chegou no térreo e viu o corpo do segundo oponente, o sujeito era monstruosamente grande, porém mal saiu da escada, escutou um sussurro muito próximo da sua orelha esquerda:
                - Cuidado!
                Sentiu no calcanhar esquerdo uma pancada sutil, uma “banda” vinda do nada o derrubou fazendo com que caísse sentado com as costas na parede, evitando no tempo exato uma rajada de fuzil que o teria partido em dois Com reflexo do tombo, o dedo do gatilho se contraiu e uma rajada de sua submetralhadora acertou um caixote de madeira, fazendo com que o atirador inimigo corresse revelando sua posição. Sardinha mirou o alvo móvel e acertou, abatendo o terceiro com a precisão de atirador de elite que seu tutor lhe ensinara á ter.
                Foi então para a porta indo rumo ao buraco no muro. Se abaixou para rastejar e ouviu um baque seco vindo da porta. Um homem grande feito uma pilastra foi cuspido da nuvem, mas quando tentava se levantar, foi puxado pelo pé, soltando um grito aterrorizado que se perdeu na escuridão vazia. Menos quatro.
                Sardinha correu o mais rápido possível para o carro, abriu o porta malas e jogou suas armas e as provas lá dentro. Ficou apenas com a pistola para cobrir Liath caso este viesse sob ataque. Os minutos passavam intermináveis, o silêncio reinava no mundo, então Sardinha pulou quando escutou duas pancadas na tampa do porta malas, Liath reaparecia da bruma, parecendo fumegar como lenha de fogueira enquanto a nuvem dispersava em sua volta.        Estava precariamente apoiado no carro enquanto jogava as armas capturadas dos inimigos e seu próprio arsenal para dentro do veículo. O mais novo fechou a mala e ia dar a volta no carro quando ouviu o mais velho gemer. Liath estava com o olho esquerdo tão inchado que parecia que este iria saltar da órbita; um corte profundo na coxa esquerda parecia ter sido feito por lâmina longa; o braço direito estava visivelmente fraturado. Mas o pior estava entre a coluna e o omoplata direito; era um tiro que fazia o sangue vivo brotar ás cusparadas. O detetive visivelmente havia levado a pior.
                Sardinha segurou a emoção e apoiou o amigo para que esse embarcasse no banco do carona.
                - Fala comigo, chefe! Não desmaia! Que houve?
                - Peguei os seis gigantes, no pânico eles estavam batendo e atirando para todos os lados, enfrentei até espada. Eu não podia usar arma de fogo ou então me descobririam e os outros iriam atrás de você. Mas matei todos.
                - Obrigado pela banda lá no pé da escada, se não fosse você eu estava morto.
                - Desculpe, mas não fui eu. Ouvi o mecanismo da sua arma disparando, mas nesta hora eu estava no patamar do segundo andar. Outro alguém te salvou. Agora... me faz um favor...?- Liath começava á resfolegar, entregando seu estado alarmante.
                - Pra qual hospital quer ir?- Sardinha saia com o carro cantando pneu.
                - Não... muitas perguntas...liga para o Castelo e avisa que a gente vai para lá....cirurgião- e Liath desmaiou ensopando o banco do carona com seu sangue.

Autor: Estevam Silva.

Ilustrador: Marco Aramha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário