Cena 11 – Aposta Menor.
Veio o
som de uma porta abrindo e luzes de lanternas apareceram cortando o escuro. Um
silêncio medroso tomou o ar, dois homens conversavam enquanto as lanternas
devagar vasculhavam o escuro. Cida instintivamente temeu pelo pior, tentou se
encolher e ficar em silêncio, mas o espaço era pequeno demais para uma mulher
grávida. As lanternas começaram á chegar perto, sua respiração foi ficando
pesada e acelerada. O velho ao seu lado já havia lhe contado o que acontecia
quando as lanternas vinham, estava paralisada de medo e dentro de sua mente,
rezava para não ser a próxima.
- A
faca não, doutor...a faca...a faca – começava novamente a voz acima dela.
Uma das
lanternas passou e parou mais adiante, a segunda luz iluminava uma prancheta:
- Não,
essa não – disse um dos homens.
- Então
qual é? Não é a três zero dois?
- Não,
é aquela ali – a lanterna iluminou Cida – ele quer a dois nove nove, a grávida.
As
luzes se aproximaram e foram direto para o rosto de Cida. Uma tranca começou á
ser aberta.
- Não,
o que é que vocês vão fazer comigo? Para onde vão me levar? – Cida estava
gelada de medo.
-
Larguem a menina! Deixem ela em paz! Não estão vendo que ela está grávida? –
falou o velho.
Algo
pesado bateu na grade ao lado:
-
Calado velho! Eu não sou cego, estou vendo que ela está grávida; é justo por
isso que ela vai.
Os
homens riram de um jeito sinistro e Cida sentiu um poderoso puxão nos cabelos:
- Não,
não! Me larga! Me solta! Eu não vou, não vou!
- Cala
a boca ratazana, quanto mais trabalho der vai ser pior para você.
Cida
esperneava e gritava, o ruído provocou uma histeria geral e o berreiro em volta
parecia de um banco de macacos em pânico. Ela tomou um golpe pesado no rosto e
achou que ia desmaiar, mas arranjou forças para resistir. Teve o braço dobrado,
o que lhe causou muita dor e a imobilizou, a mão que fazia aquilo sabia
trabalhar. Então veio uma pontada e as luzes das lanternas se apagaram, apenas
para Cida.
Shimon,
em sua gaiola viu um vulto pequeno e largo se agitando dentro da pouca luz. Viu
quando o vulto que gritava como uma mulher, emudeceu e parou de reagir. As
lanternas voltavam para o lugar de onde vieram. Segundos depois quando o
barulho parou, Shimon ouviu:
- Meu
filho, meu filho...meu filho está com fome. Pode dar alguma comida para o meu
filho?
Ele
olhou em volta, mas tudo era escuridão e mau cheiro. Mas mesmo assim, a voz que
lembrava a de um fantasma se aproximava devagar, sem parar de falar. Então algo
frio se meteu por entre as grades e tocou a pele suja e suada do dragão
adormecido.
- Você,
você tem comida para o meu filho?
-
Quem...quem está aí? Quem é você? – perguntava Shimon apavorado.
Então
uma nova lanterna surgiu e iluminou quem falava. Era uma mulher, magra demais,
doente demais. O cabelo muito loiro estava completamente bagunçado e tinha
manchas de sabe-se lá o que. O rosto chupado destacava os dois grandes olhos de
predador que miravam Shimon. A pele era de uma palidez de tinta. A roupa, uma
camisola branca e rasgada estava imunda, a mulher havia feito todas as suas
necessidades no tecido. Com uma das mãos ossudas, segurava as grades. No outro
braço, um bebê, já morto e seco, na cabeça da criança, um buraco da largura de
um polegar.
- Meu
filho está com fome, dê comida para ele – a mulher esticava o cadáver em
direção á grade.
Shimon
gritou com toda a força dos pulmões. As pernas lhe faltaram e ele caiu, mas não
chegou ao chão pois a gaiola só dava espaço para se ficar de pé.
- Se
soltou de novo, maluca? – uma voz de homem falava atrás da lanterna – venha,
vamos embora para sua jaula. Larga essa coisa, idiota! E você bicho de pelúcia,
está assustado? Relaxe, você é o próximo – uma mão coberta por uma luva de
borracha preta apontou para Shimon na gaiola e o homem gargalhou.
Cida
estava com um holofote apontado no rosto, sentia que algo frio lhe segurava as
pálpebras, evitando que os olhos fechassem. Sentiu como se estivesse deitada
nua em uma cadeira de ginecologista, a diferença é que além de nua, estava
também completamente amarrada. Ouviu vozes de homens e mulheres conversando em
um idioma desconhecido. Mas um dos homens, tinha uma voz nasalada e pausada,
mesmo falando parecia sorrir.
- Olá
minha querida- a voz do homem sorridente tinha um sotaque fortíssimo – prazer
em lhe conhecer. Ahn...nós vamos fazer alguns exames, saber se vai tudo bem com
a senhora e o nenén, rotina...rotina. Mas fique calma, eu só aconselho a
senhora a não se mexer muito ou via se machucar, ouviu? Vamos ser rápidos,
então...vamos começar, senhorita?
O homem
falou sempre ao seu lado, não se deixou ver. Mas então ele pareceu dar uma
ordem naquela língua esquisita. Cida sentiu algo fino encostar junto ao ombro
direito pelas costas, em seguida houve um estalo, um ruído de furadeira e veio
uma dor enorme. Cida gritava sentindo algo fino furar seu omoplata. Depois
parece que outra máquina se encostou no mesmo ponto mas com violência, empurrou
algo para dentro do ferimento. Cida tentava implorar, mas as palavras não
saiam, e eles não paravam. Então houve um ruído parecido com o de um grampeador
de papéis e um beliscão muito dolorido.
A
cadeira então foi manejada e suas pernas foram abertas. Sentia que estavam lhe
fazendo o princípio de um exame ginecológico, então novo ruído de broca. A
humana sentiu como se um ferro em brasas fosse enfiado fundo entre suas pernas.
A dor era tanta que ela estava perdendo o fôlego. Então parece que algo largo
foi posto dentro dela, veio um forte ruído de aspirador de pó, a dor aumentou
ainda mais. Dentro de seu corpo parecia que tudo se remexia, Cida começava á
ter convulsões mesmo consciente. Mas não se aguentou por muito tempo, enquanto
a voz do homem sorridente voltava á falar em sua língua estranha, a humana
apagou.
Quando
acordou, tudo estava escuro e fedorento de novo. Ela vomitava não aguentando o
tremendo enjoo. Não ouviu o velho ao seu lado perguntando o que aconteceu e se
ela estava bem. Lhe veio um estalo e Cida passou a mão por debaixo do corpo, na
direção da barriga. Estava com medo mas ainda tinha alguma esperança; então ela gritou, o mundo gritou! Sua criança
não estava mais com ela.
Sardinha
acordou com a porta do armário batendo, olhou no escuro em volta e sua visão
noturna distinguiu Liath terminando de vestir seu terno cinza. Vestia também
uma camisa preta e uma gravata da mesma cor.
-
Liath! Até que em fim você voltou! Por onde esteve?
-
Acordou, bela adormecida? Antes de mais nada, boa noite. Acampou no meu
apartamento e agora que eu chego nem me cumprimenta?- Liath estava mais sério
do que o de costume, era a mesma pessoa, mas a energia que vinha dele era
sólida feito concreto. Quase se podia tocar.
- Boa
noite- Sardinha respondeu contendo a ânsia.
- Fez o
que eu lhe pedi?
- Sobre
as armas? Sim fiz, mas também levei algumas de volta para o Castelo. Aleyster
recebeu uma remessa nova e eu fui trocar algumas delas.
- Não
mandou a ninja to?
- Não.
- A
French Long 7.65 ficou?
-
Lógico, você estava com essa pistola!
-
Ótimo, então se arrume pois vamos sair.
Sardinha
se preparou mas ao sair do banheiro, outras roupas estava penduradas na
maçaneta da porta. Quando ficou pronto ele usava um blazer azul cobalto com uma
calça de brim preta e uma camisa social branca. Liath lhe emprestou algumas
roupas pois iniciando uma nova época, não podiam aparecer da mesma maneira.
Minutos
depois, saiam do carro na frente do laboratório de Cat Chittor:
- Vejam
só quem apareceu? Se não são os meus dois detetives preferidos? E você está
muito bem para um ex quase defunto, Liath.
- Olá
Chittor, quanto tempo. O novato com nome de peixe me disse que deixou meu
celular aqui, onde está?
- Ali
naquela caixinha preta. Pode pegar, se eu largar esta solda agora algo pode
explodir – todos riram, menos o detetive mais velho – Falando em equipamento,
vocês dois são atiradores de elite, não é?
- Sim –
respondeu Sardinha – no escritório temos até duas armas próprias só para esse
tipo de tiro.
- Será
que podem trazer para mim? Gostaria de fazer umas melhorias nelas.
-
Chittor...veja bem, são uma .50 e uma .55, tem certeza? – perguntava Liath.
-
Claro, podem trazer. Já trabalhei este tipo de coisa, basta voltarem em três
dias e estarão prontas. Mas fora o celular, o que traz os dois aqui de uma vez
só?
- Vim
pedir mais algumas coisas, eu preciso de câmeras. Algo pequeno, que enxergue de
noite e tenha uma boa autonomia de bateria. Também preciso de escutas telefônicas
e grampos de internet. Vou montar um perímetro eletrônico nas cenas em que já
fomos e mais alguns outros lugares.
- Não
tem problema, tenho uma caixa cheia, é só pedir para a Hilda ajustar. Falando
nela...Oi Hilda, aqui estão os detetives, vem cá, deixa eu te apresentar.
Liath
então sentiu aquele perfume, o mesmo que o dominou na primeira ida ao
laboratório. Mas agora o perfume tomava tudo, feito um deus era onipresente.
Mudou as cores de tudo em volta, pareceu que mais luz entrava na sala. O
coração de Liath acelerou, o ar começou á faltar. Ficou sem reação por um
segundo, mas se dominou e se virou para conhecer a fonte daquele cheiro quente
e forte que fazia o sangue de macho alpha ferver.
Era
magra, mas um corpo bem feito, cheio de curvas delicadas. A pele branca e macia
feito neve recém caída, os cabelos eram castanhos escuro, cheios mas cortados
curtos á francesa. A boca pequena, carnuda, delicada, estava coberta com um
batom rosa e exibia um sorriso como nenhum outro. O rosto fino lhe dava uma
aparência delicada enfeitada pelos grandes olhos verdes, muito claros e muito
vivos. Ela sabia se vestir bem, roupas caras e justas que mostravam a elegância
de moça bem educada.
- Olá,
Hilda Weber! – falou a moça cheia de alegria infantil em seu sotaque germânico.
- Oi,
Sardinha. Tudo bem? – ele também estava impressionado com a moça.
Mas
então Liath esticou a mão para cumprimentar, deu dois beijos no rosto da beleza
e respondeu em um Alemão perfeito:
- Olá
minha bela, boa noite. Liath Macthire, prazer em conhecer – Liath usava a forma
antiga da apresentação dos alemães – Então você é a amiga e auxiliar cantada em
prosa e verso?
-
Nossa, você fala alemão e muito bem. Aprendeu com alguém de Berlim, não foi?
-
É...mais ou menos – Liath omitia que esse Alemão bem falado era coisa de
encarnação passada.
Por
alguns segundos, os dois viraram os donos da sala, pareciam ser os únicos ali.
Ela via traços de lobo no rosto do humano em sua frente, sentia o cheiro de
macho forte e adulto que vinha dele. Já ele viu sobre a imagem da moça, uma
versão dela mesma com traços de loba cinzenta. A imagem porem ainda era
desbotada, ela tinha o dom, mas não havia despertado, em frente ao bruxo,
estava a mais bela therian adormecida. O outro bruxo e o guepardo notaram o
delicado laço que se formava, resolveram não mexer com as feras.
- Bom
gente, eu preciso levar vocês até o estacionamento. Os dragões sabia que vocês
iriam voltar e lhes mandaram um presente. Vamos lá? – Chittor acordava os dois.
O grupo
foi caminhando para o quarteirão ao lado rumo ao estacionamento onde Liath e
Sardinha abrigaram o velho carro na primeira visita ao laboratório. Sardinha
não demorou a notar que Liath de repente sorria e fazia piadas. Chegaram e
foram para uma área cercada por uma grande cortina preta, entraram e viram o
que estava lá. Todos de olhos arregalados escutavam Chittor falar:
- Carro
inglês esportivo vermelho doce de maçã, modelo 2014! Motor V12 seis ponto zero,
de zero á cem em quatro ponto um segundos. Velocidade total de 290 km/ h no
velocímetro, eu disse no velocímetro. 460 cavalos de força, câmbio automático
de seis marchas. Bancos em couro para não rasgar as meias das meninas, rodas de
liga leve. Som com mp3 e bluetooth e tem mais isso aqui- Chitor apertou a
buzina e fez tocar as primeiras notas da música do filme de um famoso espião
inglês.
-
Lógico, essa beleza de um milhão e novecentos mil reais, se passou por mim
tinha que ter algo mais. Além dos bolsos para armas que vocês gostam embaixo do
banco, ainda tem isso aqui.
Chitor
girou a chave e veio um suave zumbido
- Já
ligou o motor?! – perguntou Sardinha.
- Já,
Hilda, por favor, o capô.
O capô
da frente foi aberto e uma tempestade de raios cobriu todos sem ferir ninguém.
- Pois
é, meninos e meninas. Seis bobinas Tesla de dois gigawats cada, carro elétrico
sem tomada, torque total disponível á zero quilômetro! Gostaram?
- Estou
bobo – disse Liath
- E eu
palerma- acrescentou Sardinha.
Minutos
depois o carro saiu. A loba adormecida e o guepardo voltavam conversando para o
laboratório:
- E
então Hilda, o que achou? Dão conta do serviço?
- Sim,
sim. Só fiquei meio intrigada com o mais velho, como é mesmo o nome dele? – ela
tentava disfarçar o interesse.
- É o
meu amigo Liath. Pode deixar, eu não conto para ninguém que você gostou dele.
Até porque, ele não tirava os olhos de você nem quando os raios choveram sobre
ele.
- Ah
Chittor, se enxerga! – ela ria.
Sardinha
atrás do volante era só alegria, no banco do carona Liath estava pensativo
vendo a rua passar em alta velocidade. Aqueles olhos verdes, aquele sorriso,
aquele perfume não lhe saiam da cabeça.
- E aí
rapaz, tremendo carro, não é?
- Ah, o
quê? Ah, é sim. Mas é só você quem dirige?
Trocaram
de lugar para o detetive poder se acostumar com a viatura nova:
-
Falando em troca de lugares, eu tenho de conversar sobre algumas mudanças
contigo Sardinha.
- O que
é chefe? Sou todo ouvidos.
- Pois
bem eu preciso lhe mostrar umas coisas, então assim sendo...ai droga,
droga...meu olho!
- Caiu
um cisco no seu olho, Liath? Pode deixar, tire a mão, vou soprar, pronto?
Justo
quando o jovem encheu os pulmões ele viu um dedo indicador encostar em sua
testa. Sentiu como se uma grande descarga elétrica invadisse seu corpo. Seus
olhos viraram para dentro e ele viu tudo branco em volta. Estava entrando no
éter, sentindo que uma grande mudança iria começar.
Autor: Estevam Silva.
Ilustrador: Marcos Aramha.


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