sexta-feira, 29 de agosto de 2014


Cena 11 – Aposta Menor.

                Veio o som de uma porta abrindo e luzes de lanternas apareceram cortando o escuro. Um silêncio medroso tomou o ar, dois homens conversavam enquanto as lanternas devagar vasculhavam o escuro. Cida instintivamente temeu pelo pior, tentou se encolher e ficar em silêncio, mas o espaço era pequeno demais para uma mulher grávida. As lanternas começaram á chegar perto, sua respiração foi ficando pesada e acelerada. O velho ao seu lado já havia lhe contado o que acontecia quando as lanternas vinham, estava paralisada de medo e dentro de sua mente, rezava para não ser a próxima.
                - A faca não, doutor...a faca...a faca – começava novamente a voz acima dela.
                Uma das lanternas passou e parou mais adiante, a segunda luz iluminava uma prancheta:
                - Não, essa não – disse um dos homens.
                - Então qual é? Não é a três zero dois?
                - Não, é aquela ali – a lanterna iluminou Cida – ele quer a dois nove nove, a grávida.
                As luzes se aproximaram e foram direto para o rosto de Cida. Uma tranca começou á ser aberta.
                - Não, o que é que vocês vão fazer comigo? Para onde vão me levar? – Cida estava gelada de medo.
                - Larguem a menina! Deixem ela em paz! Não estão vendo que ela está grávida? – falou o velho.
                Algo pesado bateu na grade ao lado:
                - Calado velho! Eu não sou cego, estou vendo que ela está grávida; é justo por isso que ela vai.
                Os homens riram de um jeito sinistro e Cida sentiu um poderoso puxão nos cabelos:
                - Não, não! Me larga! Me solta! Eu não vou, não vou!
                - Cala a boca ratazana, quanto mais trabalho der vai ser pior para você.
                Cida esperneava e gritava, o ruído provocou uma histeria geral e o berreiro em volta parecia de um banco de macacos em pânico. Ela tomou um golpe pesado no rosto e achou que ia desmaiar, mas arranjou forças para resistir. Teve o braço dobrado, o que lhe causou muita dor e a imobilizou, a mão que fazia aquilo sabia trabalhar. Então veio uma pontada e as luzes das lanternas se apagaram, apenas para Cida.
                Shimon, em sua gaiola viu um vulto pequeno e largo se agitando dentro da pouca luz. Viu quando o vulto que gritava como uma mulher, emudeceu e parou de reagir. As lanternas voltavam para o lugar de onde vieram. Segundos depois quando o barulho parou, Shimon ouviu:
                - Meu filho, meu filho...meu filho está com fome. Pode dar alguma comida para o meu filho?
                Ele olhou em volta, mas tudo era escuridão e mau cheiro. Mas mesmo assim, a voz que lembrava a de um fantasma se aproximava devagar, sem parar de falar. Então algo frio se meteu por entre as grades e tocou a pele suja e suada do dragão adormecido.
                - Você, você tem comida para o meu filho?
                - Quem...quem está aí? Quem é você? – perguntava Shimon apavorado.
                Então uma nova lanterna surgiu e iluminou quem falava. Era uma mulher, magra demais, doente demais. O cabelo muito loiro estava completamente bagunçado e tinha manchas de sabe-se lá o que. O rosto chupado destacava os dois grandes olhos de predador que miravam Shimon. A pele era de uma palidez de tinta. A roupa, uma camisola branca e rasgada estava imunda, a mulher havia feito todas as suas necessidades no tecido. Com uma das mãos ossudas, segurava as grades. No outro braço, um bebê, já morto e seco, na cabeça da criança, um buraco da largura de um polegar.
                - Meu filho está com fome, dê comida para ele – a mulher esticava o cadáver em direção á grade.
                Shimon gritou com toda a força dos pulmões. As pernas lhe faltaram e ele caiu, mas não chegou ao chão pois a gaiola só dava espaço para se ficar de pé.
                - Se soltou de novo, maluca? – uma voz de homem falava atrás da lanterna – venha, vamos embora para sua jaula. Larga essa coisa, idiota! E você bicho de pelúcia, está assustado? Relaxe, você é o próximo – uma mão coberta por uma luva de borracha preta apontou para Shimon na gaiola e o homem gargalhou.
                Cida estava com um holofote apontado no rosto, sentia que algo frio lhe segurava as pálpebras, evitando que os olhos fechassem. Sentiu como se estivesse deitada nua em uma cadeira de ginecologista, a diferença é que além de nua, estava também completamente amarrada. Ouviu vozes de homens e mulheres conversando em um idioma desconhecido. Mas um dos homens, tinha uma voz nasalada e pausada, mesmo falando parecia sorrir.
                - Olá minha querida- a voz do homem sorridente tinha um sotaque fortíssimo – prazer em lhe conhecer. Ahn...nós vamos fazer alguns exames, saber se vai tudo bem com a senhora e o nenén, rotina...rotina. Mas fique calma, eu só aconselho a senhora a não se mexer muito ou via se machucar, ouviu? Vamos ser rápidos, então...vamos começar, senhorita?
                O homem falou sempre ao seu lado, não se deixou ver. Mas então ele pareceu dar uma ordem naquela língua esquisita. Cida sentiu algo fino encostar junto ao ombro direito pelas costas, em seguida houve um estalo, um ruído de furadeira e veio uma dor enorme. Cida gritava sentindo algo fino furar seu omoplata. Depois parece que outra máquina se encostou no mesmo ponto mas com violência, empurrou algo para dentro do ferimento. Cida tentava implorar, mas as palavras não saiam, e eles não paravam. Então houve um ruído parecido com o de um grampeador de papéis e um beliscão muito dolorido.
                A cadeira então foi manejada e suas pernas foram abertas. Sentia que estavam lhe fazendo o princípio de um exame ginecológico, então novo ruído de broca. A humana sentiu como se um ferro em brasas fosse enfiado fundo entre suas pernas. A dor era tanta que ela estava perdendo o fôlego. Então parece que algo largo foi posto dentro dela, veio um forte ruído de aspirador de pó, a dor aumentou ainda mais. Dentro de seu corpo parecia que tudo se remexia, Cida começava á ter convulsões mesmo consciente. Mas não se aguentou por muito tempo, enquanto a voz do homem sorridente voltava á falar em sua língua estranha, a humana apagou.
                Quando acordou, tudo estava escuro e fedorento de novo. Ela vomitava não aguentando o tremendo enjoo. Não ouviu o velho ao seu lado perguntando o que aconteceu e se ela estava bem. Lhe veio um estalo e Cida passou a mão por debaixo do corpo, na direção da barriga. Estava com medo mas ainda tinha alguma esperança;  então ela gritou, o mundo gritou! Sua criança não estava mais com ela.
                Sardinha acordou com a porta do armário batendo, olhou no escuro em volta e sua visão noturna distinguiu Liath terminando de vestir seu terno cinza. Vestia também uma camisa preta e uma gravata da mesma cor.
                - Liath! Até que em fim você voltou! Por onde esteve?
                - Acordou, bela adormecida? Antes de mais nada, boa noite. Acampou no meu apartamento e agora que eu chego nem me cumprimenta?- Liath estava mais sério do que o de costume, era a mesma pessoa, mas a energia que vinha dele era sólida feito concreto. Quase se podia tocar.
                - Boa noite- Sardinha respondeu contendo a ânsia.
                - Fez o que eu lhe pedi?
                - Sobre as armas? Sim fiz, mas também levei algumas de volta para o Castelo. Aleyster recebeu uma remessa nova e eu fui trocar algumas delas.
                - Não mandou a ninja to?
                - Não.
                - A French Long 7.65 ficou?
                - Lógico, você estava com essa pistola!
                - Ótimo, então se arrume pois vamos sair.
                Sardinha se preparou mas ao sair do banheiro, outras roupas estava penduradas na maçaneta da porta. Quando ficou pronto ele usava um blazer azul cobalto com uma calça de brim preta e uma camisa social branca. Liath lhe emprestou algumas roupas pois iniciando uma nova época, não podiam aparecer da mesma maneira.
                Minutos depois, saiam do carro na frente do laboratório de Cat Chittor:
                - Vejam só quem apareceu? Se não são os meus dois detetives preferidos? E você está muito bem para um ex quase defunto, Liath.
                - Olá Chittor, quanto tempo. O novato com nome de peixe me disse que deixou meu celular aqui, onde está?
                - Ali naquela caixinha preta. Pode pegar, se eu largar esta solda agora algo pode explodir – todos riram, menos o detetive mais velho – Falando em equipamento, vocês dois são atiradores de elite, não é?
                - Sim – respondeu Sardinha – no escritório temos até duas armas próprias só para esse tipo de tiro.
                - Será que podem trazer para mim? Gostaria de fazer umas melhorias nelas.
                - Chittor...veja bem, são uma .50 e uma .55, tem certeza? – perguntava Liath.
                - Claro, podem trazer. Já trabalhei este tipo de coisa, basta voltarem em três dias e estarão prontas. Mas fora o celular, o que traz os dois aqui de uma vez só?
                - Vim pedir mais algumas coisas, eu preciso de câmeras. Algo pequeno, que enxergue de noite e tenha uma boa autonomia de bateria. Também preciso de escutas telefônicas e grampos de internet. Vou montar um perímetro eletrônico nas cenas em que já fomos e mais alguns outros lugares.
                - Não tem problema, tenho uma caixa cheia, é só pedir para a Hilda ajustar. Falando nela...Oi Hilda, aqui estão os detetives, vem cá, deixa eu te apresentar.
                Liath então sentiu aquele perfume, o mesmo que o dominou na primeira ida ao laboratório. Mas agora o perfume tomava tudo, feito um deus era onipresente. Mudou as cores de tudo em volta, pareceu que mais luz entrava na sala. O coração de Liath acelerou, o ar começou á faltar. Ficou sem reação por um segundo, mas se dominou e se virou para conhecer a fonte daquele cheiro quente e forte que fazia o sangue de macho alpha ferver.
                Era magra, mas um corpo bem feito, cheio de curvas delicadas. A pele branca e macia feito neve recém caída, os cabelos eram castanhos escuro, cheios mas cortados curtos á francesa. A boca pequena, carnuda, delicada, estava coberta com um batom rosa e exibia um sorriso como nenhum outro. O rosto fino lhe dava uma aparência delicada enfeitada pelos grandes olhos verdes, muito claros e muito vivos. Ela sabia se vestir bem, roupas caras e justas que mostravam a elegância de moça bem educada.
                - Olá, Hilda Weber! – falou a moça cheia de alegria infantil em seu sotaque germânico.
                - Oi, Sardinha. Tudo bem? – ele também estava impressionado com a  moça.
                Mas então Liath esticou a mão para cumprimentar, deu dois beijos no rosto da beleza e respondeu em um Alemão perfeito:
                - Olá minha bela, boa noite. Liath Macthire, prazer em conhecer – Liath usava a forma antiga da apresentação dos alemães – Então você é a amiga e auxiliar cantada em prosa e verso?
                - Nossa, você fala alemão e muito bem. Aprendeu com alguém de Berlim, não foi?
                - É...mais ou menos – Liath omitia que esse Alemão bem falado era coisa de encarnação passada.       
                Por alguns segundos, os dois viraram os donos da sala, pareciam ser os únicos ali. Ela via traços de lobo no rosto do humano em sua frente, sentia o cheiro de macho forte e adulto que vinha dele. Já ele viu sobre a imagem da moça, uma versão dela mesma com traços de loba cinzenta. A imagem porem ainda era desbotada, ela tinha o dom, mas não havia despertado, em frente ao bruxo, estava a mais bela therian adormecida. O outro bruxo e o guepardo notaram o delicado laço que se formava, resolveram não mexer com as feras.
                - Bom gente, eu preciso levar vocês até o estacionamento. Os dragões sabia que vocês iriam voltar e lhes mandaram um presente. Vamos lá? – Chittor acordava os dois.
                O grupo foi caminhando para o quarteirão ao lado rumo ao estacionamento onde Liath e Sardinha abrigaram o velho carro na primeira visita ao laboratório. Sardinha não demorou a notar que Liath de repente sorria e fazia piadas. Chegaram e foram para uma área cercada por uma grande cortina preta, entraram e viram o que estava lá. Todos de olhos arregalados escutavam Chittor falar:

                - Carro inglês esportivo vermelho doce de maçã, modelo 2014! Motor V12 seis ponto zero, de zero á cem em quatro ponto um segundos. Velocidade total de 290 km/ h no velocímetro, eu disse no velocímetro. 460 cavalos de força, câmbio automático de seis marchas. Bancos em couro para não rasgar as meias das meninas, rodas de liga leve. Som com mp3 e bluetooth e tem mais isso aqui- Chitor apertou a buzina e fez tocar as primeiras notas da música do filme de um famoso espião inglês.
                - Lógico, essa beleza de um milhão e novecentos mil reais, se passou por mim tinha que ter algo mais. Além dos bolsos para armas que vocês gostam embaixo do banco, ainda tem isso aqui.
                Chitor girou a chave e veio um suave zumbido
                - Já ligou o motor?! – perguntou Sardinha.
                - Já, Hilda, por favor, o capô.
                O capô da frente foi aberto e uma tempestade de raios cobriu todos sem ferir ninguém.
                - Pois é, meninos e meninas. Seis bobinas Tesla de dois gigawats cada, carro elétrico sem tomada, torque total disponível á zero quilômetro! Gostaram?
                - Estou bobo – disse Liath
                - E eu palerma- acrescentou Sardinha.
                Minutos depois o carro saiu. A loba adormecida e o guepardo voltavam conversando para o laboratório:
                - E então Hilda, o que achou? Dão conta do serviço?
                - Sim, sim. Só fiquei meio intrigada com o mais velho, como é mesmo o nome dele? – ela tentava disfarçar o interesse.
                - É o meu amigo Liath. Pode deixar, eu não conto para ninguém que você gostou dele. Até porque, ele não tirava os olhos de você nem quando os raios choveram sobre ele.
                - Ah Chittor, se enxerga! – ela ria.
                Sardinha atrás do volante era só alegria, no banco do carona Liath estava pensativo vendo a rua passar em alta velocidade. Aqueles olhos verdes, aquele sorriso, aquele perfume não lhe saiam da cabeça.
                - E aí rapaz, tremendo carro, não é?
                - Ah, o quê? Ah, é sim. Mas é só você quem dirige?
                Trocaram de lugar para o detetive poder se acostumar com a viatura nova:
                - Falando em troca de lugares, eu tenho de conversar sobre algumas mudanças contigo Sardinha.
                - O que é chefe? Sou todo ouvidos.
                - Pois bem eu preciso lhe mostrar umas coisas, então assim sendo...ai droga, droga...meu olho!
                - Caiu um cisco no seu olho, Liath? Pode deixar, tire a mão, vou soprar, pronto?
                Justo quando o jovem encheu os pulmões ele viu um dedo indicador encostar em sua testa. Sentiu como se uma grande descarga elétrica invadisse seu corpo. Seus olhos viraram para dentro e ele viu tudo branco em volta. Estava entrando no éter, sentindo que uma grande mudança iria começar.

Autor: Estevam Silva.

Ilustrador: Marcos Aramha.

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