sexta-feira, 29 de agosto de 2014


Cena 11 – Aposta Menor.

                Veio o som de uma porta abrindo e luzes de lanternas apareceram cortando o escuro. Um silêncio medroso tomou o ar, dois homens conversavam enquanto as lanternas devagar vasculhavam o escuro. Cida instintivamente temeu pelo pior, tentou se encolher e ficar em silêncio, mas o espaço era pequeno demais para uma mulher grávida. As lanternas começaram á chegar perto, sua respiração foi ficando pesada e acelerada. O velho ao seu lado já havia lhe contado o que acontecia quando as lanternas vinham, estava paralisada de medo e dentro de sua mente, rezava para não ser a próxima.
                - A faca não, doutor...a faca...a faca – começava novamente a voz acima dela.
                Uma das lanternas passou e parou mais adiante, a segunda luz iluminava uma prancheta:
                - Não, essa não – disse um dos homens.
                - Então qual é? Não é a três zero dois?
                - Não, é aquela ali – a lanterna iluminou Cida – ele quer a dois nove nove, a grávida.
                As luzes se aproximaram e foram direto para o rosto de Cida. Uma tranca começou á ser aberta.
                - Não, o que é que vocês vão fazer comigo? Para onde vão me levar? – Cida estava gelada de medo.
                - Larguem a menina! Deixem ela em paz! Não estão vendo que ela está grávida? – falou o velho.
                Algo pesado bateu na grade ao lado:
                - Calado velho! Eu não sou cego, estou vendo que ela está grávida; é justo por isso que ela vai.
                Os homens riram de um jeito sinistro e Cida sentiu um poderoso puxão nos cabelos:
                - Não, não! Me larga! Me solta! Eu não vou, não vou!
                - Cala a boca ratazana, quanto mais trabalho der vai ser pior para você.
                Cida esperneava e gritava, o ruído provocou uma histeria geral e o berreiro em volta parecia de um banco de macacos em pânico. Ela tomou um golpe pesado no rosto e achou que ia desmaiar, mas arranjou forças para resistir. Teve o braço dobrado, o que lhe causou muita dor e a imobilizou, a mão que fazia aquilo sabia trabalhar. Então veio uma pontada e as luzes das lanternas se apagaram, apenas para Cida.
                Shimon, em sua gaiola viu um vulto pequeno e largo se agitando dentro da pouca luz. Viu quando o vulto que gritava como uma mulher, emudeceu e parou de reagir. As lanternas voltavam para o lugar de onde vieram. Segundos depois quando o barulho parou, Shimon ouviu:
                - Meu filho, meu filho...meu filho está com fome. Pode dar alguma comida para o meu filho?
                Ele olhou em volta, mas tudo era escuridão e mau cheiro. Mas mesmo assim, a voz que lembrava a de um fantasma se aproximava devagar, sem parar de falar. Então algo frio se meteu por entre as grades e tocou a pele suja e suada do dragão adormecido.
                - Você, você tem comida para o meu filho?
                - Quem...quem está aí? Quem é você? – perguntava Shimon apavorado.
                Então uma nova lanterna surgiu e iluminou quem falava. Era uma mulher, magra demais, doente demais. O cabelo muito loiro estava completamente bagunçado e tinha manchas de sabe-se lá o que. O rosto chupado destacava os dois grandes olhos de predador que miravam Shimon. A pele era de uma palidez de tinta. A roupa, uma camisola branca e rasgada estava imunda, a mulher havia feito todas as suas necessidades no tecido. Com uma das mãos ossudas, segurava as grades. No outro braço, um bebê, já morto e seco, na cabeça da criança, um buraco da largura de um polegar.
                - Meu filho está com fome, dê comida para ele – a mulher esticava o cadáver em direção á grade.
                Shimon gritou com toda a força dos pulmões. As pernas lhe faltaram e ele caiu, mas não chegou ao chão pois a gaiola só dava espaço para se ficar de pé.
                - Se soltou de novo, maluca? – uma voz de homem falava atrás da lanterna – venha, vamos embora para sua jaula. Larga essa coisa, idiota! E você bicho de pelúcia, está assustado? Relaxe, você é o próximo – uma mão coberta por uma luva de borracha preta apontou para Shimon na gaiola e o homem gargalhou.
                Cida estava com um holofote apontado no rosto, sentia que algo frio lhe segurava as pálpebras, evitando que os olhos fechassem. Sentiu como se estivesse deitada nua em uma cadeira de ginecologista, a diferença é que além de nua, estava também completamente amarrada. Ouviu vozes de homens e mulheres conversando em um idioma desconhecido. Mas um dos homens, tinha uma voz nasalada e pausada, mesmo falando parecia sorrir.
                - Olá minha querida- a voz do homem sorridente tinha um sotaque fortíssimo – prazer em lhe conhecer. Ahn...nós vamos fazer alguns exames, saber se vai tudo bem com a senhora e o nenén, rotina...rotina. Mas fique calma, eu só aconselho a senhora a não se mexer muito ou via se machucar, ouviu? Vamos ser rápidos, então...vamos começar, senhorita?
                O homem falou sempre ao seu lado, não se deixou ver. Mas então ele pareceu dar uma ordem naquela língua esquisita. Cida sentiu algo fino encostar junto ao ombro direito pelas costas, em seguida houve um estalo, um ruído de furadeira e veio uma dor enorme. Cida gritava sentindo algo fino furar seu omoplata. Depois parece que outra máquina se encostou no mesmo ponto mas com violência, empurrou algo para dentro do ferimento. Cida tentava implorar, mas as palavras não saiam, e eles não paravam. Então houve um ruído parecido com o de um grampeador de papéis e um beliscão muito dolorido.
                A cadeira então foi manejada e suas pernas foram abertas. Sentia que estavam lhe fazendo o princípio de um exame ginecológico, então novo ruído de broca. A humana sentiu como se um ferro em brasas fosse enfiado fundo entre suas pernas. A dor era tanta que ela estava perdendo o fôlego. Então parece que algo largo foi posto dentro dela, veio um forte ruído de aspirador de pó, a dor aumentou ainda mais. Dentro de seu corpo parecia que tudo se remexia, Cida começava á ter convulsões mesmo consciente. Mas não se aguentou por muito tempo, enquanto a voz do homem sorridente voltava á falar em sua língua estranha, a humana apagou.
                Quando acordou, tudo estava escuro e fedorento de novo. Ela vomitava não aguentando o tremendo enjoo. Não ouviu o velho ao seu lado perguntando o que aconteceu e se ela estava bem. Lhe veio um estalo e Cida passou a mão por debaixo do corpo, na direção da barriga. Estava com medo mas ainda tinha alguma esperança;  então ela gritou, o mundo gritou! Sua criança não estava mais com ela.
                Sardinha acordou com a porta do armário batendo, olhou no escuro em volta e sua visão noturna distinguiu Liath terminando de vestir seu terno cinza. Vestia também uma camisa preta e uma gravata da mesma cor.
                - Liath! Até que em fim você voltou! Por onde esteve?
                - Acordou, bela adormecida? Antes de mais nada, boa noite. Acampou no meu apartamento e agora que eu chego nem me cumprimenta?- Liath estava mais sério do que o de costume, era a mesma pessoa, mas a energia que vinha dele era sólida feito concreto. Quase se podia tocar.
                - Boa noite- Sardinha respondeu contendo a ânsia.
                - Fez o que eu lhe pedi?
                - Sobre as armas? Sim fiz, mas também levei algumas de volta para o Castelo. Aleyster recebeu uma remessa nova e eu fui trocar algumas delas.
                - Não mandou a ninja to?
                - Não.
                - A French Long 7.65 ficou?
                - Lógico, você estava com essa pistola!
                - Ótimo, então se arrume pois vamos sair.
                Sardinha se preparou mas ao sair do banheiro, outras roupas estava penduradas na maçaneta da porta. Quando ficou pronto ele usava um blazer azul cobalto com uma calça de brim preta e uma camisa social branca. Liath lhe emprestou algumas roupas pois iniciando uma nova época, não podiam aparecer da mesma maneira.
                Minutos depois, saiam do carro na frente do laboratório de Cat Chittor:
                - Vejam só quem apareceu? Se não são os meus dois detetives preferidos? E você está muito bem para um ex quase defunto, Liath.
                - Olá Chittor, quanto tempo. O novato com nome de peixe me disse que deixou meu celular aqui, onde está?
                - Ali naquela caixinha preta. Pode pegar, se eu largar esta solda agora algo pode explodir – todos riram, menos o detetive mais velho – Falando em equipamento, vocês dois são atiradores de elite, não é?
                - Sim – respondeu Sardinha – no escritório temos até duas armas próprias só para esse tipo de tiro.
                - Será que podem trazer para mim? Gostaria de fazer umas melhorias nelas.
                - Chittor...veja bem, são uma .50 e uma .55, tem certeza? – perguntava Liath.
                - Claro, podem trazer. Já trabalhei este tipo de coisa, basta voltarem em três dias e estarão prontas. Mas fora o celular, o que traz os dois aqui de uma vez só?
                - Vim pedir mais algumas coisas, eu preciso de câmeras. Algo pequeno, que enxergue de noite e tenha uma boa autonomia de bateria. Também preciso de escutas telefônicas e grampos de internet. Vou montar um perímetro eletrônico nas cenas em que já fomos e mais alguns outros lugares.
                - Não tem problema, tenho uma caixa cheia, é só pedir para a Hilda ajustar. Falando nela...Oi Hilda, aqui estão os detetives, vem cá, deixa eu te apresentar.
                Liath então sentiu aquele perfume, o mesmo que o dominou na primeira ida ao laboratório. Mas agora o perfume tomava tudo, feito um deus era onipresente. Mudou as cores de tudo em volta, pareceu que mais luz entrava na sala. O coração de Liath acelerou, o ar começou á faltar. Ficou sem reação por um segundo, mas se dominou e se virou para conhecer a fonte daquele cheiro quente e forte que fazia o sangue de macho alpha ferver.
                Era magra, mas um corpo bem feito, cheio de curvas delicadas. A pele branca e macia feito neve recém caída, os cabelos eram castanhos escuro, cheios mas cortados curtos á francesa. A boca pequena, carnuda, delicada, estava coberta com um batom rosa e exibia um sorriso como nenhum outro. O rosto fino lhe dava uma aparência delicada enfeitada pelos grandes olhos verdes, muito claros e muito vivos. Ela sabia se vestir bem, roupas caras e justas que mostravam a elegância de moça bem educada.
                - Olá, Hilda Weber! – falou a moça cheia de alegria infantil em seu sotaque germânico.
                - Oi, Sardinha. Tudo bem? – ele também estava impressionado com a  moça.
                Mas então Liath esticou a mão para cumprimentar, deu dois beijos no rosto da beleza e respondeu em um Alemão perfeito:
                - Olá minha bela, boa noite. Liath Macthire, prazer em conhecer – Liath usava a forma antiga da apresentação dos alemães – Então você é a amiga e auxiliar cantada em prosa e verso?
                - Nossa, você fala alemão e muito bem. Aprendeu com alguém de Berlim, não foi?
                - É...mais ou menos – Liath omitia que esse Alemão bem falado era coisa de encarnação passada.       
                Por alguns segundos, os dois viraram os donos da sala, pareciam ser os únicos ali. Ela via traços de lobo no rosto do humano em sua frente, sentia o cheiro de macho forte e adulto que vinha dele. Já ele viu sobre a imagem da moça, uma versão dela mesma com traços de loba cinzenta. A imagem porem ainda era desbotada, ela tinha o dom, mas não havia despertado, em frente ao bruxo, estava a mais bela therian adormecida. O outro bruxo e o guepardo notaram o delicado laço que se formava, resolveram não mexer com as feras.
                - Bom gente, eu preciso levar vocês até o estacionamento. Os dragões sabia que vocês iriam voltar e lhes mandaram um presente. Vamos lá? – Chittor acordava os dois.
                O grupo foi caminhando para o quarteirão ao lado rumo ao estacionamento onde Liath e Sardinha abrigaram o velho carro na primeira visita ao laboratório. Sardinha não demorou a notar que Liath de repente sorria e fazia piadas. Chegaram e foram para uma área cercada por uma grande cortina preta, entraram e viram o que estava lá. Todos de olhos arregalados escutavam Chittor falar:

                - Carro inglês esportivo vermelho doce de maçã, modelo 2014! Motor V12 seis ponto zero, de zero á cem em quatro ponto um segundos. Velocidade total de 290 km/ h no velocímetro, eu disse no velocímetro. 460 cavalos de força, câmbio automático de seis marchas. Bancos em couro para não rasgar as meias das meninas, rodas de liga leve. Som com mp3 e bluetooth e tem mais isso aqui- Chitor apertou a buzina e fez tocar as primeiras notas da música do filme de um famoso espião inglês.
                - Lógico, essa beleza de um milhão e novecentos mil reais, se passou por mim tinha que ter algo mais. Além dos bolsos para armas que vocês gostam embaixo do banco, ainda tem isso aqui.
                Chitor girou a chave e veio um suave zumbido
                - Já ligou o motor?! – perguntou Sardinha.
                - Já, Hilda, por favor, o capô.
                O capô da frente foi aberto e uma tempestade de raios cobriu todos sem ferir ninguém.
                - Pois é, meninos e meninas. Seis bobinas Tesla de dois gigawats cada, carro elétrico sem tomada, torque total disponível á zero quilômetro! Gostaram?
                - Estou bobo – disse Liath
                - E eu palerma- acrescentou Sardinha.
                Minutos depois o carro saiu. A loba adormecida e o guepardo voltavam conversando para o laboratório:
                - E então Hilda, o que achou? Dão conta do serviço?
                - Sim, sim. Só fiquei meio intrigada com o mais velho, como é mesmo o nome dele? – ela tentava disfarçar o interesse.
                - É o meu amigo Liath. Pode deixar, eu não conto para ninguém que você gostou dele. Até porque, ele não tirava os olhos de você nem quando os raios choveram sobre ele.
                - Ah Chittor, se enxerga! – ela ria.
                Sardinha atrás do volante era só alegria, no banco do carona Liath estava pensativo vendo a rua passar em alta velocidade. Aqueles olhos verdes, aquele sorriso, aquele perfume não lhe saiam da cabeça.
                - E aí rapaz, tremendo carro, não é?
                - Ah, o quê? Ah, é sim. Mas é só você quem dirige?
                Trocaram de lugar para o detetive poder se acostumar com a viatura nova:
                - Falando em troca de lugares, eu tenho de conversar sobre algumas mudanças contigo Sardinha.
                - O que é chefe? Sou todo ouvidos.
                - Pois bem eu preciso lhe mostrar umas coisas, então assim sendo...ai droga, droga...meu olho!
                - Caiu um cisco no seu olho, Liath? Pode deixar, tire a mão, vou soprar, pronto?
                Justo quando o jovem encheu os pulmões ele viu um dedo indicador encostar em sua testa. Sentiu como se uma grande descarga elétrica invadisse seu corpo. Seus olhos viraram para dentro e ele viu tudo branco em volta. Estava entrando no éter, sentindo que uma grande mudança iria começar.

Autor: Estevam Silva.

Ilustrador: Marcos Aramha.

Cena 10 – O Desconhecido Blefa de Volta.

                Sardinha viu quando sobre a mesa da sala vazia, o celular de Liath vibrou avisando que estava em “conexão com terminal principal”. Simples, alguém havia ligado o computador de mesa na casa de Liath. Sardinha sabia que não podia tocar no celular, pegou uma grande pinça, com ela envolveu o aparelho num pano e tudo isso foi para dentro de uma caixinha de madeira em sua mochila.
                Correu até a casa do tutor mas encontrou tudo escuro e silencioso. O computador já estava desligado, então pegou o telefone da mesa e ligou para Aleyster:
                 - E aí, mala – Aleyster atendeu já sabendo quem era- encontrou seu chefe?
                 - Ele esteve aqui, roupas jogadas no banheiro e no quarto me dizem que ele ainda está mal mas saiu apressado e foi ainda há pouco. As roupas sobre a cama, estão tão quentes que parecem ter saído do forno. A garrafa daquele whisky irlandês que você deu para ele esta aberta sobre a mesa e ele não bebeu nem meio copo. Mas durante a revista achei algo mais estranho.
                - O que foi? – perguntou Aleyster.
                - As armas que o Castelo manda para nós estão escondidas pela casa inteira nos seus devidos lugares, mas a arma que fica escondida debaixo da escrivaninha foi trocada. Ele deixou a pistola que estava com ele no lugar e saiu levando aquela outra francesa que foi usada na segunda guerra. Parece que ele só veio trocar as roupas e a arma. Não levou mais nada, o carro está comigo então naquele estado ele não pode ter ido longe.
                 - Mas onde você acha que ele está então? Tem ideia?
                - Não, mas o celular avisou que foi feita conexão e o histórico do computador diz que ele pesquisou algo sobre a joia do Velho, então vou para alguém que com certeza vai saber mexer neste tipo de informação.
                E com pressa o jovem foi em direção à Praça da Cruz Vermelha falar direto com quem fez o equipamento, o engenheiro dos furries.
                Na floresta, os cinco lobos estavam juntos de novo. Andavam com dificuldade na Trilha da Caveira pois havia chovido forte horas antes. Abbadon vigiava a fronteira da Tijuca e sentiu o cheiro de um lobo entrando na mata e indo muito rápido para a trilha da caveira. Uivou para a matilha agrupar e telefonou para o celular de Wolfkin para que ele retornasse. Fenrirr ia na frente, abrindo caminho mas parou de repente.
                 - Chegamos, é ele quem está aí, mas eu não vou entrar neste lugar nem com arma na cabeça.
                Era uma clareira ampla no meio da mata, dentro dela uma única árvore, baixa mas larga e de galhos compridos e sinistros; uma fogueira brilhava. Mas na ponta de uma estaca de uns dois metros de altura, presa bem na frente do caminho,  descansava o crânio de um lobo. Aquele lobo quando vivo, abusou do direito de ser grande. Aquilo era um aviso para os desatentos.
                 - E não tem só essa, olhem em volta nos limites da clareira – continuava Fenrrir.
                Outras estacas marcavam a borda do espaço, mas havia crânios de outros animais e também de humanos.
                - Droga, ele ergueu uma cerca fantasma, eu também não ponho as patas aí dentro  –disse Kyle - Quando falei com ele ontem de noite no chat, não pensei que estava falando com um bruxo noturno.
                Bastaram estes sinais para que soubessem com quem estavam lidando. A cerca fantasma era um feitiço sabido por poucos bruxos, era uma magia do Culto das Cabeças. Quando em perigo e cercado, um bruxo recolhe os crânios ou cabeças de toda a forma de vida que encontra. Faz uma evocação e então os antigos donos das cabeças saem do mundo espiritual para defender quem fez a cerca. Reagem com força máxima e ali ficam até que seu chamador os mande embora derrubando uma das estacas. Entrar num cerco desses é pedir para morrer. Sem falar que apenas um tipo de bruxo ainda sabia este feitiço; os temidos Bruxos Noturnos, ou Bruxos Góticos.
                A maioria dos bruxos trabalha de dia e mesmo fazendo suas magias á noite, trabalha com espíritos bem leves e pacíficos. Já os noturnos assim são chamados não por serem maus, mas porque passaram por tudo de ruim que alguém pode sofrer, se tornam uma gente amarga e arisca. Á eles o mundo espiritual confia as magias mais sinistras pois eles são os que conhecem o medo, a raiva, o ódio, a solidão e tudo mais de ruim que cai sobre o coração dos homens. Usam este conhecimento para defender sua gente destas coisas, pois já que as conhecem, sabem como as evitar. O mundo espiritual também os usa de outra maneira; os bruxos comuns trabalham contra o mal de forma diplomática, já os noturnos chegam quando a diplomacia falha e o mal se espalha. Agem com força bruta usando os métodos dos bandidos contra os bandidos, pois para eles, o mal só para quando engole do próprio veneno. Era assim que estavam identificando Liath.
                 - Não acho que vamos ter problemas – falava Luke, o Alpha – não estamos aqui com más intenções. Eu vou entrar.
                Mesmo com os avisos do resto do grupo, Luke foi em frente e passou da estaca. Mal colocou o segundo pé dentro da clareira, se ouviu um rosnado claro, alto e muito ameaçador. Abbadon meteu a mão na gola da camisa de Luke e o puxou o mais rápido possível, mas a barra da calça do Alpha já estava em retalhos. Se o beta não tivesse agido á tempo, Luke esta hora já estaria estraçalhado bem na frente da própria matilha.
                Sobre quatro enormes patas, um gigantesco lobo pré histórico rosnava mostrando os dentes atrás da sua estaca. A mordida na calça de Luke foi só um aviso, o próximo á tentar não chegaria vivo na árvore; mas aí, novo susto. Bem na frente da fogueira a silhueta de um homem apareceu do nada, o ar frio da noite batia contra a cabeça que ardia em calor e de seus cabelos uma fumaça branca se levantava, os olhos eram um branco total brilhando no meio da forma escura, e na mão direita uma grande pistola dizia que seu dono não estava para conversa.
                - Auto! Quem vem lá? Identifique – se! – a voz de Liath estava diferente e as palavras saíam com um sotaque francês fortíssimo. Aquele carioca simpático e gentil parecia ter ficado no caminho.
                 - Liath, somos nós – falava Luke ainda olhando para a barra da calça – a Matilha Nova. Derrube uma estaca para a gente entrar.
                - Podem ficar por aí – respondeu o bruxo – estou preparando uma cerimônia pesada e o terreno não pode ter marcas de outros.          
                - Não sei porque nos trata assim – Wolfer se zangava pela maneira como o humano os tratava – estamos do mesmo lado e de certa forma foi você quem nos chamou aqui.
                Liath os olhou como se não soubesse do que falavam.
                 - Vocês precisam melhorar sua noção do perigo, acho que não sabem com quem estão se metendo, não é?
                 - Quem você acha que é, seu humano folgado?! – Kyle falava já visivelmente zangado – você acha que pode chamar a gente aqui e tratar um bando de lobos feito capacho de loja?
                - Eu não falo de mim, menino. Eu estou me preparando deste jeito, pois eu já tenho noção de contra quem vamos brigar, se eu fosse vocês eu me enfiava em outro canto desta mata e ia me preparar também. – Liath sentou no chão encostado em uma pedra, pondo a pistola no colo.
                O lobo pré histórico se virou e devagar caminhou até o bruxo se deitando ao seu lado, estava tranquilo feito um cão doméstico; recomeçava á chover. Luke então fez um sinal para a matilha se calar e resolveu tirar algum lucro daquele encontro estranho.
                 - Então meu amigo, contra quem você acha que vamos lutar?
                - Tenho tudo para acreditar que é um psicopata, aliás, um furry psicopata.
                 - Furry psicopata?! – era uma ideia absurda – não tem como ser isso! Este tipo de gente não existe entre nós.
                - Falou a voz do povo santo. Acorde garoto, gente ruim existe em todo o lugar, em todos os povos e raças. Acha mesmo que por serem divertidos , simpáticos e terem uma aparência inofensiva, os furries são todos uns doces? É entre as ovelhas que o lobo se esconde. Aliás, como você acha que seus assassinos escolhem as vítimas? Olhando detrás de um binóculo?! Não, eles caminham entre vocês. Sabem quem vocês são e quem devem perseguir.
                Um silêncio cheio de medo e dúvida foi a resposta ás afirmações do detetive. Os pingos de chuva sobre a pistola no colo do humano, tornavam a cena ainda mais triste.
                - Mas então – Wolfikin falava com desânimo – o que vamos fazer se ele está no meio da gente se servindo á vontade e nem sabemos o nome ou o rosto de quem nos mata?
                - “Quem não conhece o próprio exército e nem o do inimigo, sempre será derrotado. Quem conhece o inimigo mas não se conhece, poderá vencer de forma duvidosa. Mas quem conhece á si mesmo e ao inimigo, sempre terá vitórias gloriosas.” – Liath citava o Arte da Guerra de Shun Tzu -  Minha função aqui é conhecer o inimigo e preparar nossas tropas. A função de vocês, é me dar essas tropas. Lembram que eu pedi uma matilha completa e outros animais bons de combate?
                 - Concordo com você – respondia Luke – estou pensando da mesma forma.
                - Mas eu ainda acho que reunir todas as espécies vai ser difícil – completou Wolfer.
                - Quando encaramos a morte e a possibilidade do fim dos nossos mundos, todos os limites somem. Confiem no seu trabalho e tudo vai dar certo, não estamos sós. Agora vão, como eu já disse, eu estou me preparando e vocês precisam fazer o mesmo. Nos vemos em alguns dias.
                A Matilha Nova foi embora desconfiada, Liath parecia conhecer bem as coisas da guerra e da morte, mas nem de longe parecia ser tão confiável quanto diziam. O grupo trocava suas impressões sobre o encontro, mas então Wolfkin disse algo que os acalmou:
                 - Gente, não é por nada. Mas eu acho que não era o Liath que estava falando com a gente.
                - Como assim?! – todos gritaram ao mesmo tempo.
                - Enquanto ele falava, eu resolvi dar uma olhada em volta dele. A cor de aura que eu vi deixou bem claro que havia um defunto em pé na nossa frente. Ou alguma coisa se materializou na forma dele, ou então o humano estava possuído por algo. Mas “na boa”, por mais sinistro que o sujeito seja, os conselhos dele também mostram que está do nosso lado.
                Mal o grupo sumiu na mata, Liath se levantou olhando para a direção contrária que o grupo tomou, e levantou a voz dizendo:
                 - Tudo bem mulher mágica. Pode sair, estamos sozinhos, não pense que eu não a notei escondida aí no escuro.
                Uma pequena luz negra se acendeu na clareira, cresceu e tomou forma humana. Uma linda mulher com cabelos loiros cacheados até o meio das pernas apareceu, usava um vestido medieval bem feito em cores preto e azul. A pele clara feito neve recém caída contrastava com o negro dos olhos. Uma luz azul suave parecia sair do corpo de escultura.  Era uma fada noturna, mais precisamente, uma nobre de alguma grande colônia de fadas.
                - Aí está a Besta de Gévaudan em pessoa! Boa noite, Capitão Bloch.
                - Boa noite, Áilleacht. Não a vejo desde antes da minha morte.
                - Pois bem comandante, está certo que o afinador de pianos é a sua re encarnação, mas por favor, pode sair do corpo do meu amigo?
                 - Só porque você vive perto dele o enchendo de beijos e carinhos como se fosse uma namoradinha de colégio, você não tem direito de vir defende- lo. Não pense que só porque ele não a vê eu não vejo. Além do mais, eu vim para ajudar, se não fosse por mim, ele não saberia metade das coisas de guerra que ele conhece. Se eu não estivesse com ele no tiroteio do galpão o auxiliar dele teria morrido e ele agora estaria muito mais machucado. Sinceramente, você sabe quem ele está destinado á enfrentar, foi um desrespeito vocês deixarem uma alma que faz guerra desde a pré história, nascer fora de um quartel. Vocês são irresponsáveis.
                - Cuidado com a boca, sombra de mercenário! Sabe muito bem que eu só preciso levantar um dedo para declarar sua segunda morte e lhe apagar da linha encarnatória dele.
                O soldado sabia que ela tinha poder para isso mas não ia se dobrar ao medo. Porém, sem ele saber, a fada enquanto falava atirou um pouco do seu Glamour no ar e amansou a fera, ele estava pronto para aceitar qualquer pedido.
                - Então capitão, o senhor sabe que eu sou a fada madrinha dele, também vim para ajudar. Mas afinal, o que vai fazer com ele? – ela mostrava seu lindo sorriso.
                - Vou aprontar uma cabana de suor para ele, já que agora ele não é soldado, vou fazer ele acessar toda a linha encarnatória dele, do início até hoje. Com isso, ele vai acessar todos os conhecimentos militares que ganhou enquanto vivo, sem treinar vai saber lutar e preparar tropas. Mas também vai ficar bem mais poderoso, vai virar a máquina de guerra que ele é.
                - Então já que o senhor vai lhe dar este presente, fique de lado dois minutos para que eu possa dar o meu, por favor.
                Liath recobrou a consciência, mas não teve tempo nem de piscar. A fada o abraçou pensou em todo o carinho que tinha pelo humano. Um homem normal ficaria em choque só de avistar uma fada, se fosse tocado explodiria em chamas até virar cinzas. Mas ela estava enchendo um bruxo com uma faísca de sua energia. Liath amoleceu como um menino apaixonado que se abandona no abraço da namorada. Indefeso, transbordava de paixão e desejo, encantado pela beleza do ser mágico. Fadas não se apaixonam e nem sentem desejo pois sua reprodução é como a das células. Mas mesmo assim, elas gostam de provar esse impulso dos homens, como uma criança em uma loja de doces. Apenas por diversão, ela beijou os lábios de Liath lhe injetando ainda mais força.
                Liath caiu no chão e tremia como um epilético. Ela lhe passou a mão no peito e disse:
                - Eu sei que dói meu querido, mas é para o seu bem. É o melhor que posso fazer agora por você.
                Ela se foi e o homem depois de alguns minutos parou de sofrer, estava tão exausto que dormiu ali no chão. O sol raiou e Bloch o possuiu de novo. Durante todo o dia, o legionário construiu uma pequena cabana em forma de iglu. Cobriu com folhas e lá dentro acendeu uma fogueira. Quando a noite chegou, a pequena cabana parecia um forno. Ele entrou, mas como não tinha nenhuma substância própria para o serviço, fez Liath beber toda uma garrafa de bolso cheia de whisky que trouxe da casa do detetive. Estava tudo pronto, era só esperar. Ele deixou o corpo do detetive, o abandonando a própria sorte.
                Liath então se viu em pé dentro de uma caverna onde ardia uma fogueira. Havia uma saída; era uma rampa que subia em forma de caracol no sentido horário. A parede da direita era iluminada por tochas. Na parede da esquerda, estátuas de bronze em tamanho natural, eram muitas, várias centenas. Ele então devagar começou a caminhar na rampa olhando para as estátuas. Eram todos guerreiros, no pé de cada estátua, havia uma placa com o nome, ano de nascimento e ano de morte. Ele andava vendo uma a uma, quando olhava o rosto de cada guerreiro, obtinha todas as suas memórias.
                 O primeiro era um guerreiro da época da pedra lascada, vestido com a pele de um lobo, sentado aos seus pés, havia um outro lobo, que pareceu ser seu companheiro. Foi andando e mais adiante encontrou um Guerreiro Cachorro da África. Mais adiante, estava um Escudo Preto Fianna da Irlanda da idade do Bronze. Mais algumas estátuas e veio um espartano que lutou na segunda batalha do Paço de Termópilas. Um sicário judeu da época de cristo também estava lá, seguido de um Guerreiro Pantera Inca. Chegou na baixa idade média e viu um nobre cavaleiro inglês. O tempo avançou um pouco mais e apareceu um ninja do Japão que lutou defendendo o povo no Cerco de Iga, nele reconheceu a espada que Aleyster lhe deu. A rampa subiu mais e encontrou um tenente da cavalaria de Napoleão. Duas estátuas depois havia um Dragão da Independência brasileiro que foi guarda de D. Pedro I. Veio um cossaco russo e por último estava o próprio legionário que o estava perseguindo, na cintura deste, a pistola que Liath escondia sob o tampo da escrivaninha em seu apartamento. Bloch, foi o único á ser morto em combate, pois todos os outros lutaram, venceram e viveram até uma morte natural. Bloch morreu perseguindo um certo nazista muito conhecido durante a segunda guerra mundial. Liath estava com as memórias de todos eles, viu que eram todos guerreiros, viu que eram todos bruxos. Viu que várias estátuas eram acompanhadas por lobos, mas principalmente; viu que todos eram ele. 
                Depois da última estátua, na parede havia um pequeno espelho refletindo o rosto de Liath. A placa embaixo, tinha seu ano de nascimento mas não tinha o de morte. De repente a superfície do espelho vibrou como a água atingida por uma pedrinha, então do espelho, uma voz de mulher falou:
                - Filho, esta foi a marcha de todo o seu tempo, todo o seu conhecimento. Você agora sabe e lembra tudo. Use sua experiência e sua força para a guerra que virá. Você ainda tem muito o que sofrer, mas saiba que se vencer, terá uma vida longa e cheia de paz. Finalmente vai conhecer o amor e quando morrer, virá para junto de mim; descansar em paz e sabedoria, para nunca mais aos homens voltar.
                Liath caminhou e saiu da caverna, parecia caminhar no chão da Lua, olhou para cima e então viu a Terra, grande e muito azul. Viu que do espaço profundo, uma serpente gigante cheia de maldade vinha rastejando para destruir a o planeta azul, e então acordou.
                Saiu da cabana e desmontou a cerca fantasma, agradecendo e dispensando seus defensores, não precisava mais daquele tipo de coisa. Notou que seu corpo estava não só curado, mas melhorado. Para pensar na vida resolveu ficar mais um dia na mata.
                Cat Chittor acordou com a porta do laboratório quase sendo arrombada. Desceu e deu de cara com um jovem mestiço de índio com cara de desesperado.
                - Oi, desculpas pela hora. É...você não me conhece, mas meu nome é...
                - Sardinha – falou o gato mal humorado, nem furries gostam de ser acordados no meio da madrugada – Tem notícias do Liath? O que aconteceu?
                - Posso subir, aqui fora a gente pode estar sendo visto, lá em cima eu conto tudo.
                Subiram, Sardinha contou o que viu e mostrou a caixa. Chittor tirou o aparelho de lá também sem tocar. Sobre a bancada o aparelho apitava, vibrava e piscava.
                - Humm, isto é mal – falava o guepardo – Sei lá o que está acontecendo com ele, mas seja o que for é pesado. Só podemos fazer duas coisas. A primeira é: Me dê seu celular.
                Assim como fez com Liath, o felino substituiu o celular de sardinha. Mas tomou o cuidado de por os dois aparelhos em rede.
                - E qual é a segunda coisa, Chittor?
                - Esperar.
                Momentos depois no apartamento do mentor, Sardinha se preparava para dormir quando ouviu um barulho na sala. Levantou e foi checar o que acontecia. Ao acender a luz, quase desmaiou quando viu Liath de pé, encostado na escrivaninha com os braços cruzados. Não era ele, era seu espirito projetado, vestindo terno e gravata pretos e uma camisa de ceda vermelho brasa. No rosto a expressão séria terminava a pintura. Liath se transformou num bruxo noturno finalmente. Já tinha tendência para isso, mas agora havia mudado de vez.
                - Você está morto? – perguntou o jovem assustado.
                Liath virou de lado e deixou ver o fio de prata que saia brilhante de suas costas e desaparecia no ar. Se aquilo estava ali, o espirito ainda estava preso á um corpo. Liath sumiu como uma lâmpada que apaga devagar. Mas quando a imagem se foi, a sala se encheu com sua voz.
                - Descanse, mas amanhã passe óleo nas armas e afie as Lâminas. Temos muito o que lutar.

Autor: Estevam Silva.

Ilustração: Marco Aramha.

Cena 9 – Blefando Contra um Desconhecido.

                Numa das salas do Castelo, Sardinha se mantinha sentado há dias. Tinha acampado no quartel general dos bruxos e era seguido por Aleyster. Os dois amigos estavam devidamente preocupados com um terceiro amigo que deitado em uma maca fria numa sala trancada, preocupava á todos por estar em coma há vários dias.
                - Sardinha – falava Aleyster que por ser o mais velho dos três, se preocupava também com o mais novo – tome um banho e coma alguma coisa. Você não dorme há dois dias e está só a base de sanduíches. Desculpe-me, mas Liath não vai sair daquela sala tão cedo.
                - Eu sei, eu sei. Mas não me conformo com o coma dele. Sei que os médicos sofreram para não perder o cara, mas eu não me conformo. Sabe, eu fiquei sem chão quando o vi tendo convulsões em cima daquela maca toda pintada com o sangue dele. Rezei muito para o cirurgião fazer o trabalho seu trabalho tendo chegado aqui ás pressas e quase sem equipamento nas mãos. E agora, além do coma, essas febres acima dos quarenta graus que ele está enfrentando. Ninguém normal resiste á isso, mas ele é  um bruxo. Ouvi dizer que gente em coma, só não se meche, mas sente tudo, sabe de tudo que está em volta. Dentro daquele corpo ele deve estar pedindo para morrer.
                - Cara, você na verdade agora tem outra coisa para se preocupar – Alyester ia chamar o amigo de volta para a realidade – os deuses nos livrem dele fazer a última viagem – é assim que os bruxos falam em morte – mas se ele ficar naquela maca muito tempo, a investigação tem que continuar, o risco geral é grande e a tal besta com isso está ganhando tempo e tomando a frente. Você vai ter que assumir a missão. O conselho dos bruxos da nossa cidade está de cabelos em pé vendo seu melhor soldado abatido e o mundo espiritual fechado para a maioria de nós. Você tem de levantar daí, descansar um pouco e por a mão na massa.
                - Aleyster, sinceramente; estou com medo de não corresponder. Você mesmo acaba de dizer que ele é o nosso melhor soldado. Eu treino dia e noite com ele, mas ainda não estou pronto, meu treinamento ainda não acabou.
                 - Desculpe a sinceridade, mas acabou o treinamento. Seu treino agora é a ação. Mas não se preocupe, enquanto você estiver fora, tem muita gente aqui cuidando dele. Isso sem falar que desde que vocês chegaram, a porta da sala está trancada e só os médicos entram, mas foram isso, o entra e sai de elementais e totens de todo o tipo é uma coisa que ninguém nunca viu aqui. O mundo espiritual está fechado mas parece que metade dos espíritos do cosmos está vindo aqui trabalhar em cima do Liath. Vá para casa, descanse e retome de onde vocês pararam. Agora se me dá licença, tenho de ir. Eu tinha pedido uma nova remessa de armas para vocês e se não me engano, o material deve estar aí. Preciso receber tudo e esconder para que os normais não achem isso.
                - Certo, eu vou tomar um banho, trocar de roupa e ir para casa. Mas antes de sair vou passar na sala para dar mais uma olhada nele.
                Liath por sua vez, mesmo desmaiado, sentiu quando dias atrás chegou no Castelo nos ombros de Sardinha. Ouviu o grito espantado de Aleyster e de mais outros bruxos conhecidos seus. Foi deitado na maca e sentiu o cirurgião abrir com tesoura o tecido das roupas nos lugares dos ferimentos. Mas quando o médico ia começar á trabalhar, a sala ficou toda branca, parecendo estar tomada por uma neblina grossa. Então dois lobos surgiram nessa neblina. Apoiaram-se na maca, cheirando o detetive e num gesto de carinho passaram á lhe lamber os ferimentos com sua saliva medicinal. Depois de sentir algum alivio; o bruxo viu um homem em pé ao lado dele. Era a sombra, o espírito de um sujeito que era forte feito um trator, a pele era clara, os cabelos castanhos muito lisos, estavam cortados á moda militar da segunda guerra. Os olhos verdes tinham um olhar duro e decidido. A sombra vestia a farda que a Legião Estrangeira da França usava na época da Segunda Grande Guerra. Na placa de identificação acima do bolso se lia Cap. Bloch. Acima da placa do nome havia um brevê, uma identificação de paraquedista e na manga esquerda da camisa se via o símbolo da lendária 9º Divisão de Paraquedistas Legionários.
                O soldado sorriu de um jeito estranho para Liath, o segurou com uma mão pesada feito pedra e por um dos braços, atirou o detetive para o teto. Liath foi expulso do próprio corpo e nem teve como reagir. No mundo material ninguém viu isso, mas foi então que vieram a convulsão e o coma que durante dias iam amedrontar Sardinha e Aleyster.
                O detetive ia e voltava do próprio corpo á todo o momento, mas ao voltar nunca estava só. Sempre havia algum soldado, de algum país e época diferentes; até um ninja apareceu; mas quase sempre quem estava na sala era o legionário sinistro.
                Mas depois de não se sabe quanto tempo, Liath realmente acordou e saiu do coma. Estava só na sala silenciosa e escura. O corpo doía muito e os ferimentos inflamados e pingando pus não o deixavam se mexer. Mas então o capitão voltou e andou para junto da maca gelada. Parecendo ter um corpo físico, o militar virou o detetive na maca com violência, lhe pôs a mão grande e áspera sobre o coração e pela primeira vez o soldado falou num francês de homem culto:
                - Que bom que você acordou, mas agora é hora de ir soldado. Temos muito o que fazer.
                O detetive sentiu como se uma casa lhe caísse em cima do corpo e não viu mais nada, estava inconsciente mais uma vez. Mas se levantou da maca normalmente, caminhou até as roupas remendadas e as vestiu. Pegou cada um de seus objetos pessoais, vestiu o coldre onde colocou a pistola e calçou as botas que ainda tinham algumas manchas do seu próprio sangue. Mas na hora de pegar o celular que Chittor havia feito para ele, algo estranho aconteceu.
                Quando a mão do humano chegou perto, o aparelho se ligou, mas a tela ficou toda vermelha e a frase “alerta de intruso” apareceu. O aparelho tremia de um jeito sinistro, parecendo uma bomba pronta para explodir. A mão se afastou e o aparelho apagou. O detetive então olhou em volta, tinha de sair, mas ao contrário do normal, ao invés da porta foi para a janela. Olhou para baixo, a rua lateral estava somente á um andar abaixo. Subiu no parapeito, encostou a janela para dar a impressão que ela estava fechada e saltou. Caiu com os pés na calçada vazia. Ninguém o viu ou escutou, o porteiro do prédio na calçada em frente dormia e a noite esvaziava a avenida Rio Branco logo ao lado.. Então, sem sentir os ferimentos, seu corpo se moveu na direção de sua casa á alguns minutos dali em linha reta.
                Minutos depois Sardinha entrou na sala com lágrimas prontas dentro dos olhos, acendeu a luz e viu ninguém. A sala estava vazia, seu mentor havia sumido. A mão do jovem bateu com força no botão de emergência ao lado da porta, bruxos começavam á brotar correndo de todos os cantos do prédio. Liath havia sido levado, alguém passou por toda  a guarnição do Castelo e como um ninja levou o corpo de um bruxo em coma. Só restou de Liath o celular. A tela do aparelho pulsava devagar com uma luz amarela, ali sardinha leu “sem sinal procurando rede.” O aparelho também procurava o dono.
                Minutos depois duas recepcionistas acabavam seu turno de trabalho no hotel três estrelas que funcionava na rua do bruxo. Uma delas o identificou, mas mesmo quando o homem passou andando feito um robô á alguns metros das mulheres, uma delas sentiu algo estranho e falou para a amiga:
                - Olha menina, é ele!
                - Ele quem? – perguntou a outra.
                - Lembra que uma vez eu quase fui assaltada na rua atrás do hotel e um morador daquele prédio em cima da lotérica me salvou?! É aquele homem ali, mas ele está estranho, a pele dele está vermelha e ele está tão quente que passou por nós parecendo uma fogueira acesa. Deve estar ardendo em febre de tão doente, não sei como está andando... tadinho...
                Liath viu tudo preto em sua frente, quando a vista clareou, se viu deitado no chão da sala de seu apartamento, apenas lembrava de ter olhado pela janela lateral do Castelo. Estava banhado de suor; caminhou com muita dificuldade para o banheiro, tirou as roupas e debaixo do chuveiro limpou os ferimentos com um remédio conhecido apenas pelos bruxos e alquimistas. No quarto, se vestiu e caminhou para a sala, pegou a garrafa de uísque sobre a geladeira, estava tão fraco que a garrafa parecia pesar dez quilos. Sentou-se á escrivaninha e ligou o computador, tinha que trabalhar nas pistas que ainda não havia observado, a ideia era achar um sinal da gema e sabia como fazer isso.
                Abriu uma gaveta e puxou a caixa que Exano lhe deu quando o detetive estava entre os dragões. Abriu a caixa de madeira e da lá tirou uma caneta com ponta de pena toda banhada em ouro. A caneta era do “Velho”, colocou a caneta dentro do scanner e comandou o computador para escanear e rastrear. Enquanto a máquina fazia seu trabalho, ele acessou a rede digital privativa dos furries, queria saber se algo mais acontecera, queria tranquilizar os amigos que o davam por morto e também queria fazer contatos. Sabia que o inimigo tinha uma tropa ao seu serviço, se Liath quisesse enfrentar o inimigo, teria de levantar um exército também.
                Nas muitas vezes que saiu do corpo durante o coma, falou com o espírito do Alpha da Matilha Grande, sabia que lobos forasteiros chegaram na Floresta da Tijuca, sabia seus nomes e até mesmo onde estavam. Formaram uma nova matilha e já havia um novo Alpha na cidade. Conseguiu contato com quase todos por meio da rede. Encontrou Tiger que não escondeu a felicidade ao saber que seu irmão humano estava vivo. Conheceu Albus, á quem convidou para ir para a Floresta da Tijuca se unir aos outros. Conheceu também Kuma, um jovem urso que morava no interior Rondônia.
                Liath não sabia, mas na casa de Kuma havia mais um furry, Azure Nyoki era um dragão já desperto. Mesmo sendo ainda muito jovem, antes do tempo normal Azure já havia se formado em Biologia; se hospedou na casa de Kuma sob desculpa de pesquisar para sua tese de mestrado em Genética. Azure queria falar com Kuma e se sentou ao lado do amigo no computador. Kuma logo notou que o amigo não estava bem  mas disfarçou tentando animar o dragão.
                - Olha só Nyoki! Lembra que o pessoal do Rio, São Paulo e Minas,  está falando de um troço sobre uma besta que anda matando furries por lá?
                - Sim, lembro – falou o dragão incomodado pelas dores no ombro direito.
                - Lembra também que disseram que tem um detetive bruxo correndo atrás da besta? Pois é, eu estava aqui na chat com o pessoal do Sudeste e olha quem apareceu, o detetive. Pegue o seu tablet e fale com ele também! O cara parece ser legal, e pelo que vejo, todo mundo que está no chat conhece ele. Vem, entra!
                 - Não Kuma, obrigado. Eu não estou passando bem, lembra que meu ombro tem doido de novo esta semana? Pois é, sempre que isso começa eu tenho problemas, o pior é que nunca doeu tanto como neste exato momento. Eu vou embora.
                O urso olhou para o amigo e viu sua fursona ligada. Nyoki era um dragão branco com detalhes azuis, mas quem via sua fursona  se assustava, nela haviam vários implantes mecânicos, Azure Nyoki era um dragão androide. Os implantes foram postos ali á força por não se sabe quem, Azure nunca lembrava. Mas ele sabia que quando as dores no implante do ombro esquerdo começavam, homens loiros e grandes feito postes apareciam tentando sequestra-lo. Mas agora as dores eram maiores, ou os sequestradores estavam muito perto, ou mais gente o procurava. A única saída era fugir. Kuma não tinha como dizer não, foi com tristeza que viu o amigo ir para a floresta, preparar sua partida. Azure evocou uma magia de dragão muito antiga, a terra pareceu tremer, uma névoa se levantou e do chão o espírito de um dragão ancião surgiu. Nyoki o viu e apenas perguntou:
                - Para onde?
                - Para o mar, procure o lobo negro que vive na toca junto do mar.
                Quando o sol raiasse, Azure estaria de malas prontas dentro de um barco para a cidade de Porto Velho, ali pegaria um avião para o Nordeste e começaria a buscar o tal lobo do mar.
                No exato instante em que Azure saiu da casa, o computador do detetive terminou a busca. Um sinal bem ativo estava na Zona Oeste do Rio, era “OVelho” morrendo em sua casa. Um sinal médio da gema estava na Região dos Lagos do Rio, um outro maior na Cordilheira dos Andes e um último, o menor de todos estava em Rondônia. Este sinal era o único em movimento. Mas o detetive estava tão mal que entendeu Roraima, não resistiu ao entusiasmo e declarou os sinais no chat, todos se alegraram com a boa notícia. Fora isso, Liath pedia a Kyle, membro da Matilha Nova que convocasse mais lobos, queria uma matilha completa, cinquenta lobos. O detetive começava á reunir sua tropa. Mas de repente, sentiu a febre subir e teve que sair do chat.
                Neste momento escutou uma voz de homem atrás de si, vinda da parede a voz falou em Francês:
                - Chega, você já descansou o suficiente. Precisamos marchar de novo.
                Quando olhou para trás, Liath viu o legionário, que de tão perto estava quase em cima dele. A vista de Liath escureceu novamente.
Autor; Estevam Silva.
Ilustrador: Marco Aramha.



Cena 8 – Inscrições Tardias.

                Era ainda nos tempos do Rei e a questão ecológica já preocupava umas poucas cabeças. Na corte, ou seja, o Rio de Janeiro; o plantio ganancioso do café levou ao desmatamento absoluto uma enorme área que antes era verde. Hoje, seria toda a localidade entre o bairro do Alto da Boa vista, a estrada da Serra Grajaú/ Jacarepaguá, Barra da Tijuca e a própria Tijuca; sem dúvida, um lugar enorme. Mas a única cabeça brasileira que se preocupou por ver tudo aquilo transformado em rocha nua, foi o próprio Rei Dom Pedro II. “El Rei” então deu ordem para que seis ex- escravos coletassem e transportassem mudas nativas sob supervisão de um botânico do ainda jovem Jardim Botânico. Assim nasceu a maior floresta do mundo dentro de terreno urbano, grande o suficiente para se chamar os bombeiros quando alguém ali se perdia.  Agora, quem controlava o lugar, não eram os guardas da Polícia Federal ambiental, nos bastidores, seus novos donos eram outros. Era um tipo de furry que onde chega causa desconforto, não só por serem criaturas com fama muito agressiva, mas também por serem todos místicos sem exceção. Por toda a Floresta da Tijuca os guardas começaram á notar impossíveis pegadas de lobo.
                Três  quilômetros depois do fim da Estrada da Represa dos Ciganos; uma fogueira estava acesa num buraco no chão, para evitar que o brilho atraísse a atenção de intrusos. João Von Wolfkin, Were Fenrirr e Lupo Kyle Lobo chegaram em datas diferentes; mas estavam na Floresta da Tijuca desde que o dia amanheceu. Ainda esperavam a chegada de mais dois. Eram justamente os três mais jovens do grupo que se formaria e por isso aguardavam. Faltavam na matilha o Caçador Beta e o Macho Alpha.
                - Droga, estou morto de fome – João iniciou a conversa da noite – e o pior é que não trouxe nada, não tinha mais espaço na bagagem.
                 - Também estou azul de fome – continuava Fenrirr – espero que os outros dois tragam alguma coisa. Kyle, sabe me dizer se o “Mansão dos Mortos” já chegou?
                - Abaddon? Sim, ele já está na cidade, mas ele ainda precisa esperar pelo mais velho, o problema é que eu não sei de onde ele vem e nem quem é. Mas sem ele Wolfer não vai se unir a nós.
                A noite estava nublada e úmida. Fora o fogo nada havia que os tirasse as muitas preocupações da cabeça. Sabiam que um lobo mais velho viria, logo, ele seria o Alpha; mas ninguém sabia quem ele era. Wolfer Abaddon costumava ser o cabeça até por ser fisicamente o mais avantajado, mas estava muito nervoso e agressivo nos últimos tempos, com isso, escorregou naturalmente para a posição de Beta,  o lobo encarregado da defesa direta da matilha. O mundo espiritual devido aos últimos acontecimentos com os furries, havia se fechado. Só os mais experientes conseguiam contato, não era o caso de nenhum dos três. Esta era a primeira convocação de matilha com missão que tinham longe de suas casas; mas a cereja no alto desse bolo amargo, era que o detetive, um lobo como eles; a esta hora já deveria estar frio dentro de um caixão.  Mas então o focinho mais jovem em volta da fogueira deu sinal:
                - Vem gente aí!-  cheirou o ar novamente – são dois.
                Todos se levantaram, Fenrirr e Kyle mostravam os dentes, lambiam os lábios superiores e arregalavam os olhos enquanto rosnavam baixo, típico sinal de lobos que detectam intrusos, só João continuava concentrado, cheirando o ar:
                - Relaxem, um eu não sei quem é, mas é lobo. O outro é o Abaddon.
                Wolfer chegou com uma grande mochila cargueira nas costas, parecia que ia acampar por muito tempo, tinha o rosto tranquilo apesar da aparência cansada. Do seu lado, um sujeito na casa dos trinta anos.
                A apresentação entre lobos é uma coisa bastante diferente. Quem vê de fora, acha que mordidas e garradas vão estourar a qualquer momento, mas eles claramente primeiro se examinam e depois se entrosam. Cada um trata de se colocar em seu lugar sem usar a voz. Então depois de uma aparente sobrecarga de agressividade, começam os cumprimentos em forma de toques, abraços, patadas de brincadeira, uivos de boas vindas e etc... É um ritual social entre feras, portanto, quem falha se machuca. Por incrível que pareça, não há más intenções nisso. É um ritual social entre feras. Mas a coisa fica muito delicada se o recém chegado é um lobo solitário em boa forma, alguém forte para sobreviver sem matilha chegando no território causa insegurança geral.
                Wolfer que não era burro deu um passo para o lado, pois se alguém fosse mal interpretado, não queria que mordida nenhuma sobrasse para ele.
                - Boa noite, Luke Lobo – disse o recém chegado, que além de forte olhava o grupo debaixo para cima, com um olhar ameaçador; o Alpha já dava seu show. A intimidação inicial ficava ainda mais pesada pois ele era ainda maior que Abaddon.
                Essa seria a hora em que uma fêmea se poria a frente para relaxar a tensão e faria as apresentações; mas nessa matilha não havia fêmeas. Outra forma, era o Alpha anterior fazer as apresentações, mas formalmente, Abaddon nunca foi Alpha. Então sobrou para o mais novo; sua curiosidade iria tirar a tensão inicial no território.
                João saiu do seu lugar e com alegria foi cumprimentar Wolfer que já era amigo seu há algum tempo, mas na vez de falar com Luke ficou sem jeito. Foi assim com o grupo inteiro. Então sem aparente explicação, Luke abriu um grande sorriso e foi muito alegre abraçar um por um, era a segunda parte da apresentação. Todos relaxaram, mas ninguém ficou sem notar que Luke tinha um braço bem pesado. O novo Beta então tratou de romper o silêncio:
                - Gente, sou só eu ou alguém mais aí está com fome?
                 - Caramba Wolfer, o João estava justamente falando disso com a gente.
                - Podem deixar – disse Luke – já cuidei disso. Alguém fez um espeto aí? Se não houver espeto isso aqui vai queimar.
                Então atirou no colo de Kyle um grande embrulho feito de plástico. João veio olhar de perto e soltou o primeiro uivo da matilha nova.
                - Búfalo! É búfalo do norte gente!  Onde você conseguiu isso, Luke?
                A carne foi posta no fogo e lentamente o cheiro começou á subir. Cheiro de lobos caçando na neve. Cheiro de território bom. Cheiro de matilha feliz e unida.
                - Vocês já notaram que não temos fêmeas no grupo? – perguntou
                - É, infelizmente notei – disse Luke – nenhuma atendeu a convocação?
                - Não – respondeu Abaddon – a única loba que eu sei que está nas redondezas, ainda não despertou completamente e me parece que mora com um felino em algum ponto da cidade, não sei onde. A única coisa que sei dela é que não é brasileira.
                 - Mas pessoal, mudando de assunto – Wolfkin interrompeu – agora que o Liath morreu, o que é que vamos fazer?
                - Wolfkin, você foi o único de todos nós que teve algum contato com ele, ele chegou a lhe contar algo? Ele comentou de alguma conclusão?
                - Fenrirr, eu só tive contato com ele por telefone, uma única vez e a ligação não durou nem cinco minutos. Não teria como ele me explicar algo.
                - Foi sobre o caso do furrie que mataram em Belo Horizonte, não é? – perguntou Abaddon -  Aliás, Luke, isso foi no seu território, soube de algo?
                - Não muito – respondia o Alpha – mas pelo que vi das fotos, parecia que não foi humano. Mas quem disse que Liath está morto?
                - Ué, essa é a notícia que corre á boca miúda – Kyle voltava para a conversa – fiquei sabendo que ele foi metralhado e já faz uma semana. Nem o auxiliar dele apareceu desde então. A última noticia que tive foi que ele tinha sido muito ferido e estava mais lá do que cá. Em seguida começaram á falar em morte.
                - Não – Luke sabia de mais coisas – hoje cedo, antes de vir para cá, falei com o espírito do Alpha da Matilha Maior. Ouvi dele que segundo o lobo espiritual que acompanha o detetive, ele está muito ferido mas ainda não morreu. Parece que seu espírito atravessou a fronteira dos mundos muitas vezes em poucos dias, mas ele vai viver.
                - Se o Grande Alpha disse isso – Wolfikin pois muito respeito na voz – então é o que acontece, ele não ia mentir pra ninguém.
                Todos concordaram e Wolfkin continuou.
                - Mas agora então nosso problema é outro, ele não deve voltar de imediato, vamos esperar?
                - Não, somos lobos, não ficamos parados por nada nem ninguém – Luke já mostrava sua autoridade – meu plano é simples. Vamos trabalhar, vamos auxiliar o Liath enquanto ele não volta pessoalmente. Eu quero chamar outros grupos, não só matilhas, mas inclusive outros animais. Vamos montar uma rede de defesa e investigação para adiantar o serviço. Vamos ficar na defesa da espécie como um todo, quero leões para patrulhar, chacais e raposas para observar e quem mais puder contribuir na operação deve ser chamado. Alguma sugestão?
                 - Sim – Fenrir falou – que tal os cimios? Ah, vocês acham que não?! Sabia que tirando os bonobo, os orangotangos e os gorilas, todos os outros címios são hiper agressivos? Chimpanzé só em engraçado quando filhote, os adultos pesam o dobro de um humano, têm mais de um metro e oitenta, arrebentam vidros de carro no tapa e as prezas fazem um estrago horrível. São quase tão territorialistas quanto nós – Fenrirr omitiu o fato que depois de batalharem contra bandos intrusos, os chimpanzés cometem canibalismo.
                 - Ratos – disse Kyle – não consigo ver olheiros melhores. Também devemos chamar os felinos, pois vamos precisar de ajuda mística por causa do tipo de inimigo que se ouviu falar, e lógico, vamos ter de chamar os dragões, pois eles começaram isso tudo.
                - As Quimeras – lembrou João – são raras, mas por viverem mudando de forma, podem fazer de tudo e ninguém sabe com que cara estarão no dia seguinte.
                Então Abaddon que apenas ouvia, em fim entrou na conversa para lembrar um detalhe desanimador:
                - Luke, meu Alpha. Isso tudo no papel é muito bonito. Mas devemos lembrar que furries têm um costume muito feio. Se não é igual á mim, não tem minha consideração. Dragão só fala com dragão, gato só fala com gato, réptil com réptil e por aí vai. Já observaram como tratam os primos cachorros nos eventos. O que você está propondo, é a união dos furries como um todo, mas não temos este pensamento.
                 - Tem razão Abaddon, mas se os furries não passarem á se olhar como espécie, como cultura ou mesmo como tribo urbana, será a extinção da raça como um todo.
                Coincidência ou não, um bando de pássaros  decolou assustado na mata coberta de noite. Depois de um curto silêncio, o Alpha disse a outra parte do plano.
                - Bom, dito isso, agora temos de ver a parte inicial do plano. Liath.
                 - Olha, eu sei que ele está sob cuidado dos bruxos, eu sei que eles têm um lugar fechado na cidade, mas não vão nos deixar bater na porta e entrar; João tem o telefone dele mas não tem o endereço; e para piorar, se ele está assim tão machucado, vai demorar a voltar. Onde vamos achar o cara? – pensou Fenrrir.
                - Acha que nós somos os únicos lobos da nessa floresta? – falou Luke -  Adoramos correr na mata, não é verdade? Então cedo ou tarde, o detetive vai bater aqui. Wolfkin fica no território urbano para telefonar para ele caso saiba de mudança, faça contato também com outros furries. O resto de nós, cada um vai acampar em uma fronteira da floresta, assim que ele aparecer vai passar por um de nós que vai alertar o resto da matilha. Vamos falar com ele todos juntos e nos oferecer para batalhar
                 - Olha, quando eu vinha para cá hoje, passei por uma certa Trilha da Caveira – João detalhava – ao longo dela eu notei uns sinais meio esquisitos da frequência de um lobo que não aparece faz tempo. Talvez seja o Liath.
                - Então agora vamos jantar – Luke dava suas últimas palavras – depois disso, vamos assumir posições. A união dos furries, de um jeito ou de outro, começa esta noite.
Autor: Estevam Silva.

Ilustrador: Marco Aramha.

Cena 7 -  Platéia.

                Já haviam se passado dois dias e duas noites inteiras, ninguém sabia coisa alguma de Liath. Ainda menos gente sabia do que ocorria com os Furrys, ás vezes até alguns deles mesmos.
                No fim da terceira manhã após o tiroteio, um tigre branco estava sentado em um restaurante na Zona Sul da cidade, havia ido até a casa de um presidente de escola de samba para negociar um contrato como carnavalesco para o ano seguinte. O peixe grelhado que pediu chegou.  Como sempre, estava com dificuldades para segurar os talheres, era preferível enfiar a cara no prato e comer como o tigre que era; porém estava na rua. O restaurante estava vazio, nas mesas do lado de fora, junto do furry haviam somente dois humanos em outra mesa, mas não podia se dar ao luxo de fazer como em casa ou teria de passar atestado de maluco.
                Justo quando ia conseguindo dar a primeira garfada, ele escuta uma voz conhecida vinda de suas costas:
                - Olha só quem está aqui! Tudo bem Tiger?!
                - Chittor?! – Tiger falou surpreso.
                Tiger ronronou baixo e deu um abraço no amigo recém chegado o convidando para sentar á mesa.
                - Não sabia que você estava na cidade – continuava Tiger – chegou quando?
                - Ah, vim de São Paulo tem algumas semanas, me contrataram para um serviço especial, fico aqui enquanto for necessário e então volto para casa.
                - Está trabalhando onde?
                - Estou numa loja de sucata de informática ali atrás da Praça da Cruz Vermelha.
                - Pertinho de lá de casa- sem perceber Tiger soltou um miado no meio da frase- você tem de ir lá em casa assim que puder, estou costurando uma nova suit, está ficando muito boa.
                - Meu, bem que eu queria, mas o tempo é pouco. O serviço é meio embaçado e o cliente é importante. Fora isso, sabe que minha auxiliar ainda não consegue ficar sozinha no laboratório, então eu tenho de por a mão em tudo.
                - E quem é o patrão? Alguma empresa conhecida?
                - Não, é pessoa física – Chittor  era muito amigo de Tiger mas não podia revelar muita coisa para manter o sigilo do caso – é um  detetive que está informatizando o escritório dele. O sujeito tem um nome meio estranho, nome de irlandês, Liath Macthíre.
                - Peraí...Liath. Alto, moreno, cara de matador? Por acaso você já viu alguma coisa de lobo nele?
                - Sim, ele é meio esquisito, nunca tinha visto um bruxo humano antes, mas ele enxerga nossas furzonas e tem algo de lupino nele que não sei dizer muito bem. Mas o sujeito é tipo. Vocês se conhecem?!
                - Claro! Liath com essa descrição só tem um no mundo e é um amigo meu nascido ali na Cruz Vermelha mesmo. Nos conhecemos há mais de década; ele era amigo de uns alunos meus quando eu ensinava desenho. Mas a gente continuou com a amizade. Ele já era bruxo na época e viu meu despertar. Lembra que eu te falei que minha furzona acordou de vez quando eu fiz uma iniciação no totem do gato aqui no Rio? Pois é, ele é o meu iniciador. Mas que eu me lembre, ele trabalhava afinando pianos. Ele agora é detetive?! Bom já tem alguns anos que não nos vemos pessoalmente, as coisas mudaram para mim, para ele não deve ter sido diferente.
                - Pois é, ele ainda afina pianos- respondeu Chittor com um ar preocupado – mas está resolvendo um problema para uns furries de São Paulo que estão aqui no Rio também. Um grupo de dragões.
                Os cabelos da nuca de Tiger se levantaram como os pelos das costas de um gato se levantam quando o bicho vê algo que não gosta.
                - Humm, dragões é? Gente estranha. Estão sempre em reuniões intermináveis e quando saem juntos geralmente algo de pesado acontece. Pior para o Liath, que só conhece os furries através de mim, ele não sabe coisa alguma do assunto e foi se meter logo com dragões? A embrulhada deve ser grande...
                Chittor por questões óbvias estava guardando segredo do caso, mas Tiger era muito amigo, pessoa confiável e acima de tudo outro felino. Resolveu contar o caso para o amigo começando por perguntar o quanto ele sabia sobre a besta. Tiger tinha poucas informações desencontradas; Chittor o colocou á par do resto e terminou dizendo:
                - Pois é, é nisto que seu amigo humano está metido, e minha parte é cuidar do equipamento e das armas dele. Mas o homem sumiu já faz três dias e não manda notícias.
                Mas de repente um rugido de tigre e um miado se ouviram bem perto da mesa. De surpresa outros dois felinos apareciam. Assim com Tiger, Zeng eram um tigre branco; com ele chegava Zenon Lothar, um gato da raça Miskin. Ambos de São Paulo, assim como Chittor.
                Caudas invisíveis ao olho humano balançavam para todos os lados ao som de ronronados e miados. Era difícil tantos gatos se encontrarem assim tão espontaneamente. A alegria era geral.
                - Gente, está todo mundo aqui! Mas que balaio de gatos é esse de repente? – perguntava Tiger, todo felicidade. Naturalmente desviaram do assunto e todos resolveram ficar e almoçar. Tiger continuou com seu peixe, Chittor pediu um bife e foi seguido por Zeng; Zenon para disfarçar, pediu macarrão com almôndegas.
                A dificuldade com os talheres foi geral, mas aí Zenon fala:
                - Não gosto muito de massa, mas é só fingir que estas almôndegas estão com gosto de rato que desce.
                - O cheiro realmente parece com rato – disse Zenon.
                - Eu acho que seria melhor se o gosto fosse de gazela Thompson – respondeu Chittor.
                - Gente – cortou Tiger – vamos esquecer disso, o mais importante é que estamos todos juntos, vamos comer.
                - Concordo – falou Chittor – virou festa, mas ainda acho que se tivesse gosto de gazela seria melhor.
                Apesar dos risos, havia uma razão para os furries começarem á se encontrar no Rio de Janeiro. Os gatos, como sempre, estavam entre os primeiros á suspeitar. E sem avisar, o assunto verdadeiro mais uma vez tomou conta da mesa pela boca de Zeng, mas também ficou claro que nem todos os furries sabiam do caso, e os que sabiam não conheciam toda a verdade.
                - Gente, e a Besta, hein? Ouvi dizer que sumiu mais um no Rio e mataram outro em Minas.
                - Quem sumiu e quem morreu? – Zenon interrogava o amigo – E que papo mais doido é esse de besta?!
                Chittor e Tiger se entreolharam, Tiger  pensou nas mesmas razões de Chittor para falar sobre o caso e falou tudo o que sabia completando com a notícia que o guepardo lhe dera mais recentemente; mencionou também que era amigo do detetive.
                Zenon ficou espantado pois desconhecia tudo do caso e achou aquilo muito grave, ainda mais por saber de mortes na história. Mas Zeng não desconhecia tudo e trouxe noticias novas e alarmantes.
                - É, mas eu estou sabendo que o detetive entrou num tiroteio tem coisa de três dias atrás, desde então ninguém ouve nada sobre ele- por piedade de Tiger, Zeng omitiu o final da notícia.
                O clima de alegria acabou pois Tiger ficou muito preocupado com o amigo humano que já havia passado poucas e boas junto dele. Se consideravam irmãos mesmo andando caminhos separados. O tigre mais velho queria ir para casa tentar achar o amigo. Todos se levantaram e foram se despedindo com abraços, ronronados , miados e cheiradas; o que deixou os dois humanos na mesa próxima de cabelos em pé e bocas abertas. Zenon e Zeng foram para um lado, Tiger e Chittor iam para o ponto de ônibus no lado oposto; mas Tiger voltou correndo pois não resistiu á ânsia e veio perguntar á Zeng se ele sabia algo mais sobre Liath. O outro tigre branco respondeu a pergunta com um ar sombrio no rosto:
                - Olha Tiger, eu estava sem jeito e até com medo de lhe dizer, mas a notícia que rola, é que seu amigo foi baleado, morto e será enterrado amanhã de tarde. Ele falhou e morreu.
                Tiger não resistiu e chorou a morte do irmão homem ali mesmo na calçada.
Autor: Estevam Silva.

Ilustrador: Marco Aramha.